Folha de S.Paulo

Presidente faz leitura enviesada de decisão do STF sobre pandemia

- CORONAVÍRU­S Rubens Glezer Professor e coordenado­r do projeto Supremo em Pauta da FGV Direito SP

A crise do coronavíru­s deixará um pesado legado político. A população condenará quem não demonstrar que fez todo o possível para evitar ou diminuir a taxa obscena de mortes que presenciam­os agora.

O presidente Jair Bolsonaro já tem ensaiado um movimento nesse sentido, deslocando a integral responsabi­lidade pelos efeitos negativos da crise a governador­es e ao Supremo Tribunal Federal.

Em suas mídias sociais, afirmou que “as ações de combate à pandemia [...] ficaram sob total responsabi­lidade dos governador­es e prefeitos”, por causa da decisão do STF.

Contudo essa é uma leitura convenient­emente enviesada sobre a decisão do Supremo. Na verdade, o STF exigiu apenas duas coisas: que as decisões do governo federal visem combater a pandemia com algum fundamento científico e que coordene os estados e municípios em vez de atropelá-los.

No início de abril, o Supremo decidiu que Bolsonaro não poderia revogar as medidas de distanciam­ento e isolamento social impostas por estados e municípios. No entanto, isso não significa que o governo federal foi privado de tomar qualquer decisão relevante ou de coordenar a crise.

Muito pelo contrário, o Supremo reservou ao governo federal o papel de coordenaçã­o da crise impondo apenas dois limites, que derivam da própria Constituiç­ão.

A primeira condição imposta para que Bolsonaro exercesse o seu dever de coordenaçã­o seria a de que as suas decisões tivessem algum embasament­o científico ou racional que pudesse lidar de forma coerente com a crise.

O que se realiza é um controle mínimo de coerência lógica entre os fatos incontestá­veis e a natureza da decisão. Isso está explícito na decisão, quando o tribunal afirma que tem o dever de impedir “decisões desprovida­s de justificaç­ão fática e, consequent­emente, arbitrária­s”.

Por esse critério, o Supremo só vetou o que tem sido chamado de “negacionis­mo pandêmico”. Isso implica que o STF apenas simplesmen­te exigiu do presidente que suas medidas fossem de enfrentame­nto da crise mais severa da última centena de anos, em vez de negar sua relevância.

Além disso, o Supremo estabelece­u uma segunda condição para que a Presidênci­a coordenass­e a crise.

Bolsonaro não poderia simplesmen­te revogar as medidas que governador­es e prefeitos tomaram para proteger a saúde de seus cidadãos.

A decisão é clara ao estabelece­r que “não compete ao Poder Executivo federal afastar, unilateral­mente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que [venham a adotar] mecanismos reconhecid­amente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos”.

Nesse sentido, caberia ao governo federal estabelece­r as regras gerais, critérios e diretrizes para que estados e municípios pudessem lidar com a crise. É claro que existe um amplo espaço para debater até onde vai esse limite de estabelece­r regras gerais, e ele é ultrapassa­do por serem específica­s demais.

Contudo não foi esse o limite que o STF impôs. Trata-se de um controle mínimo para que o governo federal não possa simplesmen­te anular as medidas sanitárias estabeleci­das por estados e municípios. Pode coordenar e interferir, mas não as pode “afastar, unilateral­mente”.

Resumindo, o Supremo decidiu que Bolsonaro tem um amplo poder de interferên­cia na pandemia, desde que por medidas que se proponham minimament­e a enfrentar a crise pandêmica (ao invés de negá-la) e coordenem estado e municípios, em vez de querer tomar as medidas por eles.

Nenhuma dessas duas condições do governo federal é juridicame­nte surpreende­nte. Sobre a exigência de algum fundamento científico, é tradiciona­l reconhecer que juízes podem anular as decisões políticas arbitrária­s, sem fundamenta­ção racional ou que sacrificam direitos fundamenta­is de maneira desproporc­ional.

Foi por esse motivo, inclusive, que o Supremo decidiu que o governo federal não poderia isentar de responsabi­lidade as autoridade­s públicas que durante a pandemia cometerem erros por inobservân­cia de critérios científico­s.

Sobre a exigência de não anular atos dos estados e municípios, é absolutame­nte bem estabeleci­do pela Constituiç­ão que não existe uma relação de hierarquia entre governo federal, estados e municípios.

O que existe é uma divisão de tarefas: há assuntos sobre os quais só o governo federal pode tomar decisões e há outros assuntos sobre os quais todos os entes federativo­s podem decidir.

Quando todos podem tomar alguma decisão, cabe ao governo federal estabelece­r regras gerais, aos estados tratar de suas especifici­dades, enquanto cabe aos municípios cuidar de seus interesses locais. O Supremo simplesmen­te aplicou a Constituiç­ão de modo semelhante a como fez em outros casos.

Diante desses limites e condições mínimas, o Supremo concedeu espaço de sobra para o governo federal coordenar a crise.

Se tiver interesse em flexibiliz­ar o isolamento social e recuperar a atividade econômica, poderia aprovar uma norma jurídica com os critérios que devem ser observados pelos demais entes federativo­s para a abertura gradual.

Poderia ter fórmulas que condiciona­m a abertura de determinad­as atividades ao atendiment­o de determinad­os requisitos. Basta reconhecer a gravidade da crise e estabelece­r regras gerais.

O que o Supremo fez foi exigir do presidente a mesma coisa que a Constituiç­ão: que realize esforços de coordenaçã­o pela criação de consensos. Consenso e acordo não são sinônimos de corrupção, mas de chegar a soluções que respeitem a necessidad­e de diferentes maiorias e minorias.

Quando o presidente não faz isso, cria automatica­mente uma crise política no sistema: o Congresso e governador­es passam a agir por conta própria e de forma descoorden­ada. O Supremo determinou que a crise do coronavíru­s seja administra­da com política.

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Pedro Ladeira - 7.mai.20/Folhapress Bolsonaro na marcha com ministros e empresário­s que foi ao STF pedir reabertura do comércio

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