Folha de S.Paulo

Novos rumos para o projeto do século?

Crise internacio­nal desafia a principal iniciativa da política externa chinesa

- Senior fellow na Universida­de de Negócios Internacio­nais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheir­a sênior do diretor-geral da OMC | seg. Mathias Alencastro Tatiana Prazeres | dom. Sylvia Colombo | qui. Lúcia Guimarães | sex

Em 2013, Xi Jinping anunciou o que viria chamar de “projeto do século ”— iniciativa, estima-se, de ao menos US$ 1 trilhão (R$ 4,98 tri) em infraestru­tura ao redor do mundo. Pouco depois da largada, a Iniciativa do Cinturão e da Rota (BRI, na sigla em inglês) encontrari­a uma crise econômica de proporções colossais.

Como a mudança de circunstân­cias afeta a principal iniciativa da política externa chinesa sob Xi? O que está em jogo para a China, que investiu capital político para obter apoio de mais de 130 países e investe recursos financeiro­s em ferrovias, rodovias, portos, energia e conexão digital sob o selo da BRI?

A realidade é que, com uma recessão iminente, muitos dos que recebem esses investimen­tos não terão condições de arcar com seus compromiss­os. Como Paquistão e Egito, vários outros recentemen­te pediram à China a renegociaç­ão de suas dívidas.

Os financiame­ntos da BRI costumam contar com ativos importante­s em garantia, como minas e portos, inclusive porque normalment­e quem toma esses empréstimo­s tem risco de crédito alto. A China pode recorrer a essas garantias se necessário —mas com custo político alto.

Em 2017, os chineses assumiram por 99 anos o controle do porto de Hambantota, no Sri Lanka, quando o país não conseguiu honrar compromiss­os financeiro­s. As críticas ao desfecho do caso serviram como sinal de alerta para Pequim.

As vozes mais duras acusaram a China de praticar a diplomacia da armadilha da dívida, como se buscasse deliberada­mente endividar outras nações para aumentar seu poder sobre elas.

Pequim sab eque enfrentaum­a dose de desconfian­ça em relação à BRI, mesmo que Hambantota tenha sido um episódio absolutame­nte isolado. Autoridade­s chinesas lembram que várias iniciativa­s avançam bem ou já foram concluídas com sucesso.

Com a recessão atingindo países parceiros, a China enfrenta decisões difíceis sobre a BRI.

Se for flexível a ponto de perdoar as dívidas, enfrentará críticas internas. As finanças do país também estão sob pressão e, ademais, alguns sempre questionar­am a aplicação desses recursos vultosos no exterior.

Se for rigorosa no cumpriment­o dos acordos, estará sujeita, no plano externo, a acusações de comportame­nto econômico predatório. Além disso, colocará em xeque as boas relações com receptores dos investimen­tos, um objetivo chave da BRI.

A China deve tomar o caminho do meio, equilibran­do-se entre preocupaçõ­es internas e externas, entre prioridade­s econômicas e políticas. Isso significa flexibiliz­ar prazos e juros, mas sem chegar ao ponto de transforma­r empréstimo em doação. Também deve evitar a execução de garantias que levem à apropriaçã­o de ativos estrangeir­os.

É de se esperar que a China tire o pé do acelerador e aproveite a oportunida­de para promover ajustes de rumo na BRI.

Deve fazer depuração dos projetos, evitando os mais arriscados. Deve acentuar ênfase em infraestru­tura digital e economia verde—inflexão já buscada. Dado o momento, acrescenta­rá projetos na área da saúde, promovendo a“Rotada Sedada Saúde ”.

Desdes eu lançamento, aBRI foi visto como um conceito vago, a começar pelo seu nome. Pois como muito na China, ideias elásticas, com foco e regras flexíveis, permitem ajustes de rumo, conferem margem de ação para o governo. Esta é uma das horas em que a plasticida­de do conceito do BRI mostra seu valor. Até porque suspender o projeto do século não é uma opção.

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