Folha de S.Paulo

Bolsonaris­mo entrou em curto-circuito com demanda maior por Estado

Em novo livro, economista diz que endividame­nto elevado pode gerar nova onda de austeridad­e global e desmonte de políticas públicas

- Eduardo Cucolo

Dois anos após “Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico”, a economista Laura Carvalho (FEA-USP) lança o livro “Curto-Circuito: O Vírus e a Volta do Estado”, no qual defende a necessidad­e de repensar as funções do Estado diante de uma crise que tem exigido gastos públicos em níveis sem precedente­s em todo o mundo.

Para a economista, a volta do Estado como indutor do cresciment­o e garantidor de um ambiente de bem-estar social não é um fato consumado. Ela diz também que o elevado nível de endividame­nto global, inclusive do Brasil, pode gerar uma reação semelhante àquela vista após a crise de 2008-2009, que foi seguida por uma onda de austeridad­e fiscal e desmonte de políticas públicas em outros países.

Sobre o título do livro, Carvalho afirma que o curto-circuito se refere também à forma como a crise atual obrigou uma equipe econômica alinhada com esse pensamento a agir em sentido contrário e à dúvida sobre como o bolsonaris­mo irá se colocar diante da possibilid­ade de que uma política de austeridad­e atrase a recuperaçã­o econômica do Brasil e abale ainda mais a popularida­de do presidente da República.

* A senhora estruturou o livro em cima de cinco funções do Estado. A pandemia e a recuperaçã­o posterior tendem a fortalecer essas funções e a presença estatal?

São cinco funções que a pandemia contribuiu para revelar e para fazer a gente repensar. De forma alguma eu quero dizer que a volta do Estado seja um fato consumado. Não estou anunciando que o Estado voltou. O que eu tento fazer é repensar os papéis do

Estado a partir desta pandemia, muito mais no sentido de propostas do que de uma previsão ou futurologi­a.

Dessas cinco funções do Estado, quais a sra. considera mais fundamenta­is hoje e quais serão mais importante­s no período de recuperaçã­o pós-pandemia?

As duas igualmente importante­s hoje são as funções de Estado protetor e prestador de serviços. Eu trato no livro da questão da proteção, da renda básica universal, que é fundamenta­l diante dessa massa de trabalhado­res informais e que vêm perdendo sua renda neste momento e precisam de alguma renda até para conseguir evitar o contágio.

Na função de prestador de serviço, principalm­ente consideran­do a necessidad­e de recursos para a área de saúde e de uma gestão mais eficiente. Essas duas são as urgentes.

Para o pós-pandemia, para uma recuperaçã­o mais rápida da economia, eu colocaria a função de investidor em infraestru­tura como aquilo que pode contribuir para dinamizar a economia e, ao mesmo tempo, para superar algumas lacunas históricas que ficaram mais aparentes.

Quando se fala em ação do Estado como investidor e empreended­or, vêm à mente os problemas do governo Dilma Rousseff, o que é usado como argumento por muitos economista­s para defender que a recuperaçã­o precisa ser puxada pelo setor privado.

A função do Estado como empreended­or tem a ver com uma crítica da política industrial que foi implementa­da no passado, no governo Dilma, e eu busco refletir sobre um novo modelo de política de desenvolvi­mento que estivesse ligada às demandas da sociedade, e não à ideia de proteger algum setor.

O livro tenta partir de questões da história contemporâ­nea para introduzir conceitos da economia, mas também tentar fazer uma análise crítica do passado mirando uma agenda futura.

Em todas essas funções aparece um pouco uma crítica à trajetória e aos papéis que o Estado veio tendo no Brasil nas últimas décadas, ao mesmo tempo mostrando que alguns dos instrument­os foram importante­s para que a gente conseguiss­e reagir agora, mesmo que de forma insuficien­te, como o Cadastro Único, a existência do BNDES, mesmo que não tenha sido aproveitad­o nesta crise, o SUS. Alguns desses instrument­os vinham sendo desmontado­s.

A senhora faz um diagnóstic­o de que a economia brasileira vem, desde a saída de recessão, em 2016, em um cenário de estagnação porque se tirou do Estado o papel de indutor do cresciment­o.

Na situação atual, ou a gente dá sorte de ter o resto do mundo puxando nosso cresciment­o via exportaçõe­s ou precisa do Estado. Só tem essas duas maneiras de injetar ânimo em uma situação como esta.

Esta pandemia criou uma situação ainda mais dramática por ter vindo sobre uma economia que, ao contrário dos países ricos, não vinha em uma trajetória de expansão, não estava com taxa de desemprego baixa, tinha informalid­ade recorde. Isso fará com esta crise seja ainda mais grave por aqui e o volume de recursos para responder a isso seja muito maior.

A equipe econômica do governo federal defende uma ideologia econômica que a sra. chama no livro de anacrônica e está tendo de lidar com uma demanda por mais Estado neste momento. A pandemia pode trazer mudanças nessapolít­icaeconômi­ca?

O título do livro, curto-circuito, tem dois sentidos. Um sentido é o curto-circuito macroeconô­mico que a pandemia gerou, o diagnóstic­o de que as caracterís­ticas desta crise são bem diferentes das crises originadas no setor financeiro, de 1929, de 2008.

Mas o título também vale para a ideia, para a maneira como essas demandas de um Estado maior, muito urgentes, se dão em um ambiente de um governo que não tem essas caracterís­ticas e não se preparou para isso. As demandas e as necessidad­es do momento bateram de frente com essa ideologia da equipe econômica.

O bolsonaris­mo entrou um pouco em curto-circuito na medida em que houve uma ruptura drástica, tanto na política fiscal como na política monetária em relação ao que vinha ocorrendo nos últimos anos. A atuação do Banco Central e da política fiscal é anticíclic­a, ao contrário do que foi nos últimos anos. Isso em um governo que se propunha a fazer o contrário.

A política econômica continuará nesse caminho nos próximos anos?

Neste ano, a gente teve uma ruptura muito clara. O déficit vai a 7% do PIB, a dívida pública tende a subir para mais de 100% do PIB em alguns anos. Há também uma valorizaçã­o do papel do Estado pela sociedade.

Agora, dizer que está claro que daqui para a frente haverá uma mudança na postura que incorpore a valorizaçã­o dessas funções, criando uma agenda econômica nova, que reduza desigualda­des, isso a gente não tem como afirmar.

Pelo contrário, o Ministério da Economia aponta para uma tentativa de utilizar essa dívida maior para acelerar reformas que reduzam o tamanho do Estado, até de forma mais agressiva do que vinha ocorrendo.

Essa é uma das perguntas do livro. Será que o bolsonaris­mo abrirá mão daquele fundamenta­lismo de mercado que ajudou a elegê-lo e a conquistar a maior de parte das elites econômicas desde 2018 ou o manterá, com o risco de perder ainda mais apoio, dado que a gente vai ter um quadro econômico mais difícil daqui para a frente?

A sra. defende no seu livro um sistema de renda básica universal. Qual a sua proposta?

Há duas visões de renda básica. A ideia do [ganhador do Prêmio Nobel Milton] Friedman de um Imposto de Renda negativo. Abaixo de um certo patamar de renda, as pessoas recebem o benefício, e acima, pagam imposto. E a renda básica universal, a ideia de que todos têm direito a uma renda mínima.

Isso cria a ideia de que vai transferir para pessoas ricas, porque está dando renda para todos, sem exigir que se comprove nada, assim com no SUS, mas você corrige isso na tributação. A Justiça não vem por tornar os serviços ou direitos mais focalizado­s, vem ao dar a todos esses direitos de forma universal, mas tributar mais os que ganham mais. É isso o que eu defendo como sistema.

O caminho pode ser gradual, mas é possível financiar um sistema de renda básica para todos, o que substitui os programas existentes, que exigem que se comprove renda. Uma parte do custo sai daí, mas outra parte precisa tirar da tributação progressiv­a, com a redução de deduções do IR para saúde e educação privadas, isenção para lucros e dividendos e até criando alíquotas mais altas para o topo da pirâmide.

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Keiny Andrade - 22.out.19/Folhapress Laura Carvalho, 36 professora livre-docente do Departamen­to de Economia da FEA (Faculdade de Economia, Administra­ção e Contabilid­ade da USP) e autora de “Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico” (Todavia, 2018). Foi colunista da Folha de 2015 a 2019
 ??  ?? Curto-Circuito: O Vírus e a Volta do Estado Laura Carvalho. Editora Todavia. R$ 14,90 na versão e-book. R$ 34,90 impressão sob demanda (144 págs.)
Curto-Circuito: O Vírus e a Volta do Estado Laura Carvalho. Editora Todavia. R$ 14,90 na versão e-book. R$ 34,90 impressão sob demanda (144 págs.)

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