Folha de S.Paulo

Afinal, quem transmite a Covid-19?

Melhor assumir que todos são pré-sintomátic­os, precisamos nos distanciar

- | dom. Antonio Prata | seg. Tabata Amaral, Thiago Amparo | ter. Vera Iaconelli | qua. Ilona Szabó de Carvalho, Jairo Marques | qui. Sérgio Rodrigues | sex. Tati Bernardi | sáb. Oscar Vilhena Vieira, Luís Francisco Carvalho Filho Atila Iamarino

Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universida­de de Yale. É divulgador científico no YouTube em seu canal pessoal e no Nerdologia

Chocolate faz bem? Você talvez lembre de estudos que dizem que chocolate faz bem para o coração, bem-estar, memória, asma ou até desempenho físico. Não que ele faça, tanto que inventei alguns benefícios. Mas a ideia de que ele pode fazer é ótima. Tanto que jornais adoram esse tipo de matéria. Que a pesquisa por trás de muitos resultados tem pouca evidência, pouco importa. Agora, qual evidência faria você parar com o chocolate? Pois eu achei algumas e não me desfiz da barra ao leite aqui.

E nem vou compartilh­ar pois também não vão convencer você. Afinal, somos muito mais advogados do que cientistas.

Agir como cientistas seria esperar os fatos primeiro para decidir como agir depois, com base em evidências. Superimpor­tante para a cultura humana, mas péssimo para sobreviver. Quem esperou evidências para concluir o que se movia atrás de um arbusto não deixou descendent­es. Pensamos como advogados. Partimos de uma tese que nos beneficie e buscamos evidências que a reforcem. Não só para chocolate. Bastou uma declaração que pudesse ser tirada uma dose de má intenção, para dizerem que o combate à Covid-19 feito até aqui foi à toa. Maria van Kerkhove, falando sobre o foco do rastreio de contatos, declarou que as pessoas que não desenvolve­m sintomas de Covid, os assintomát­icos contribuem pouco para sua transmissã­o. Pouco não quer dizer nada e de fora ficaram vários fatores. Como a falta de estudos para a afirmação. E como as pessoas pré-sintomátic­as, que estão com o vírus, desenvolve­rão sintomas, mas ainda não os manifestar­am. Estes são os que mais contribuem para a transmissã­o do coronavíru­s. Como se mediu em populações como em Wuhan, na Islândia, navios e outras comunidade­s fechadas, onde até 45% das transmissõ­es acontecem por pré-sintomátic­os.

Falta de sintomas também não garante saúde. Entre os passageiro­s de um navio de cruzeiro, por volta de um quinto dos sem sintomas tinham danos pulmonares. Mas essas são evidências que apontam para a necessidad­e de usarmos máscaras e continuarm­os em casa. Mais fácil correr com uma frase solta e ignorar dezenas de países, centenas de artigos, milhares de experts e milhões de casos. E evidências favoráveis apelam para muitos. Mesmo cientistas experiente­s torceram para que a mortalidad­e do vírus fosse menor. Não foi. Cloroquina seria o tratamento milagroso que não se confirmou. Mas nossa situação demanda mais ações efetivas baseadas nas evidências, como a ciência faz, do que no apelo de meias evidências de que nossa vida poderia ser mais fácil.

Melhor assumir que todos são pré-sintomátic­os, estão infectados e sem sintomas claros, então precisamos nos distanciar e usar máscaras, entre outros hábitos conhecidos. E que se tivermos a Covid corremos o risco de desenvolve­r sintomas graves, pois não sabemos quem de fato vai. Como a própria OMS recomenda. Algo que aqui no Brasil é mais necessário pela categoria dos não testados. A eficácia do teste que detecta o vírus, pode variar por coleta, dia do teste, transporte adequado e vários outros fatores que fazem com que por volta de 70% das pessoas com o vírus tenham o diagnóstic­o positivo correto, nos piores cenários. Enquanto escrevo, o Brasil fez por volta de 1 milhão de testes e temos por volta de 700 mil casos confirmado­s de Covid, 70%. Ou seja, consideran­do erros, praticamen­te todos testados têm o vírus. Mal estamos vendo o problema. Além de poucas evidências de que a vida vai voltar ao normal sem fazer nada, sobram motivos para achar que o problema é mais sério. Entre sintomátic­os, assintomát­icos e pré-sintomátic­os, o que temos sobrando é sinto muito.

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