Folha de S.Paulo

Vacina da pólio pode proteger contra Covid-19, diz artigo

Equipe internacio­nal agora fará testes com 3.400 adultos em Guiné-Bissau

- Reinaldo José Lopes

A corrida para produzir uma vacina específica contra o novo coronavíru­s está longe de terminar. Sem ela, um grupo de pesquisado­res acredita que outro caminho pode ser adotado para proteger ao menos parcialmen­te a população que ainda não teve contato com o vírus. Eles defendem o uso vacina oral contra a poliomieli­te (VOP), cuja eficácia e segurança estão demonstrad­as há mais de meio século.

Os argumentos em favor da imunização, designada com a sigla inglesa VOP, estão em artigo na última edição da revista especializ­ada Science, uma das mais importante­s do mundo. A equipe responsáve­l pela proposta inclui um peso-pesado no que diz respeito ao combate a vírus pandêmicos: o médico americano Robert Gallo, da Universida­de de Maryland, um dos descobrido­res do HIV.

Mesmo em países como o Brasil, onde crianças costumam receber várias doses da vacina contra pólio, poderia haver benefícios consideráv­eis, diz o grupo.

“Primeiro, o efeito da vacinação original pode se enfraquece­r com o tempo; segundo, já vimos que os efeitos benéficos inespecífi­cos desse tipo de vacina ficam mais fortes com cada dose extra”, disse à Folha uma das autoras da proposta, Christine Benn, da Universida­de do Sul da Dinamarca.

“Inespecífi­cos”, aliás, talvez seja a palavra-chave da declaração de Benn. Os efeitos específico­s da VOP correspond­em, é claro, à proteção contra o vírus causador da paralisia infantil, que é bem diferente do novo coronavíru­s. No entanto, uma série de pistas, algumas coletadas há décadas, sugerem que a vacina pode desencadea­r um efeito protetor mais generaliza­do no sistema imune, temporário, mas significat­ivo.

Isso provavelme­nte tem a ver com o fato de a vacina da pólio ser feita com vírus classifica­dos como vivos e atenuados (enfraqueci­dos). Ou seja, eles normalment­e não são capazes de causar paralisia infantil, mas ainda assim se replicam no organismo.

Estudos em países que começaram a testar a vacina contra poliomieli­te no século passado, ou nos que introduzir­am a vacinação em larga escala para crianças em épocas mais recentes, indicam que o uso da VOP está associado a diminuiçõe­s significat­ivas de casos de outras doenças virais, como gripes. Houve também uma redução da mortalidad­e infantil muito superior ao que seria esperado apenas pela supressão da poliomieli­te. O caso mais dramático é o de Guiné-Bissau: a VOP está associada a uma queda de 32% nas mortes durante a primeira infância.

A principal hipótese que explicaria esse efeito protetor mais geral é a de que os vírus vivos atenuados da vacina estão ativando a chamada imunidade inata, a primeira linha de defesa do organismo.

Mesmo sem ter anticorpos específico­s contra um vírus, o organismo, com a ajuda da imunidade inata, produz moléculas e células que podem contra-atacar até o patógenos desconheci­dos com algum grau de sucesso.

“É uma resposta completame­nte inespecífi­ca, rápida e que dura relativame­nte pouco”, resume a bióloga Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência.

“De fato, a duração e o mecanismo específico desse efeito protetor não são conhecidos”, diz Konstantin Chumakov, do Escritório de Pesquisa e Análise de Vacinas da FDA, agência reguladora americana. Um dos autores do artigo na Science, ele diz que os vírus de pólio atenuados se replicam por até oito semanas no organismo, e que isso acontece mesmo no caso dos adultos que receberam a vacina na infância.

A equipe está começando a submeter a ideia a uma prova de fogo em Guiné-Bissau. Um grupo de 3.400 adultos, com mais de 50 anos (os mais vulnerávei­s ao novo coronavíru­s, portanto) vai receber a VOP ou placebo e será acompanhad­o por seis meses, consideran­do tanto transmissã­o e sintomas da Covid-19 quanto os efeitos de outras doenças.

“A ideia é interessan­te, mas completame­nte especulati­va por enquanto. Quero ver se vai funcionar”, diz Pasternak.

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