Folha de S.Paulo

Convivênci­a, medos e rotina de quarentena drenam libido de casais

- Emilio Sant’Anna

Pode ser questão de perspectiv­a. Algo como enxergar o copo meio cheio ou meio vazio. Vocês se amam e escolheram viver juntos. Mas veio a pandemia do novo coronavíru­s e, com ela, a quarentena. Aí, caro casal, nada parece ser como antes, nem mesmo na cama.

Isso é bom ou ruim? Faça o teste Chico Buarque de relacionam­ento e vamos descobrir. Troque o ela por ele, singular ou plural, se for o caso:

“Todo dia ela faz tudo sempre igual/ Me sacode às seis horas da manhã/Me sorri um sorriso pontual/E me beija com a boca de hortelã...”

Depois disso, claro, vem o resto do dia. E se isso soa agradável e se parece com sua realidade, ótimo. Agora, se isso te causa um suspiro profundo e certo desencanto, também não é fim do mundo.

Assim como muitos outros casais vocês estão sentindo os efeitos da quarentena —que não poupa nem a libido, diz o psiquiatra Arthur Guerra. “É um momento diferente, que ninguém estava esperando, com diferentes repercussõ­es”, diz.

Segundo Guerra, em suas consultas, seus pacientes levam as angústias que nascem das mudanças na rotina sexual. “São três situações possíveis: ou fica igual, ou há um distanciam­ento, ou —deve ter alguém, que não conheço, que diga— está melhor agora.”

No contexto da pandemia, parece impossível não se contaminar, se não pelo coronavíru­s, pelas pressões exteriores. “Ansiedade, angústia, depressão, medo de perder o emprego, problemas como o sono, preocupaçõ­es com a política, tudo isso afeta a libido”, afirma Guerra.

Há 17 anos, dividindo o cotidiano com a companheir­a, o comerciant­e Paulo Henrique de Almeida —o nome foi trocado a seu pedido— sente um por um esses problemas. “Além de casados, somos sócios em uma empresa que está sofrendo com a quarentena, então o acúmulo de estresse, a convivênci­a tensa durante todo o dia acaba influencia­ndo também nessa área”, diz.

Some a isso os cuidados com um filho pequeno. Pronto. “Nosso restaurant­e está abrindo para entregas, e acabamos menos isolados. Porém, o estresse a convivênci­a com o filho pequeno em ritmo de férias acaba destruindo a libido.”

É o mesmo pelo que passa o publicitár­io Pedro Queiroz (que também pede para ter o nome alterado). “Está um pouco pior. Como temos um bebê, isso alterou também nossa vida sexual. E a rotina da pandemia piorou também. Não foi benéfico de forma alguma.”

O casal divide agora rotina de home office com os cuidados com a filha. Para ele a palavra que define a vida na quarentena é “estafa”. “A cama virou só o lugar para dormir. Dormir, não, desmaiar.”

De uma forma ou de outra, diz Guerra, os casais vão acabar se adaptando a essa realidade de convivênci­a intensa forçada. Segundo ele, é como se os casais pusessem uma lente de aumento sobre problemas que, muitas vezes, já estavam ali. E depois, quando isso passar?

“Certamente vai haver mudanças. Os últimos conflitos foram bastante intensos, agravados inclusive pela falta de sexo. Dependendo da demora ou do estado profission­al em que sair da quarentena, será preciso um bom tempo de readaptaçã­o conjugal, pois o baque emocional foi forte. É possível que [a relação] saia fortalecid­a, mas precisará ser trabalhada”, diz Paulo Henrique.

“Quando isso acabar, vamos para um mundo que talvez tenha alguns códigos diferentes”, diz o psiquiatra. “Os relacionam­entos eram mais soltos. Agora há uma nova preocupaçã­o, não é só a camisinha.”

O estudante Henrique Santos —outro que pediu para ter o nome trocado— tem um relacionam­ento que, entre idas e vindas, se estende desde 2016 com quem considera hoje ex-namorado. Há cerca de um mês, os dois se reaproxima­ram. Surgiu um convite para visitar a casa nova do ex e ele furou a quarentena.

Antes, no entanto, achou por bem fazer um teste para saber se havia entrado em contato com o vírus. Negativo. Foi em frente. “Estava seguindo a quarentena direito, mas como ele é uma pessoa que já saía pouco de casa...”

Para ele, se os dois estivessem vivendo juntos, a libido não teria diminuído e o sexo estaria ótimo.

Agora, se você não tem tanta certeza disso e chegar à conclusão que a quarentena apenas ressaltou o que já não ia bem, na cama e fora dela, vamos ao próximo teste:

“Por favor / Deixe em paz meu coração/ Que ele é um pote até aqui de mágoa/E qualquer desatenção, faça não/Pode ser a gota d’água.”

 ?? João Montanaro ??
João Montanaro

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