‘Destacamento Blood’, de Spike Lee, retrata tragédia com pompa
STREAMING Destacamento Blood EUA, 2020. Direção: Spike Lee. Elenco: Chadwick Boseman, Delroy Lindo e Jonathan Majors. Na Netflix a partir da sexta (12).
O oportunismo e o senso de oportunidade tornaram possível a longa carreira de Spike Lee em Hollywood, algo raro, senão único, no caso de um diretor afro-americano.
No ano passado, ele recebeu o Oscar de melhor roteiro adaptado por “Infiltrado no Klan”, que seria mais justo ter ganho em 1989 por “Faça a Coisa Certa”, mas o prêmio recente e a atenção recebida devem ter estimulado Lee a fazer algo mais ousado que resultou em
“Destacamento Blood”.
Sua carreira se firmou por um olhar entre o irônico e o dramático sobre as relações afetivas em Nova York, em especial, sobre o Brooklyn, onde nasceu, cresceu e trabalha. Nos últimos anos, fez filmes, no seu melhor, eficientes mas pouco pessoais, inclusive fora de uma ambiência afro-americana, como “A Última Noite”. O ocaso na indústria parecia ser o horizonte da carreira de Lee.
A biografia “Malcolm X”, em 1992, foi uma escolha ousada, sustentada pelo carisma de Denzel Washington e que não desqualifica a violência como arma política, quando o que se poderia esperar seria um filme sobre Martin Luther King, o reverendo pacifista, mais palatável para a América liberal. Fazer um filme sobre Malcolm X foi tanto uma resposta ao presente quanto à história da população afro-americana em seu país.
Infelizmente, não é o que acontece com “Destacamento Blood”. Seu projeto mais ambicioso desde “Malcolm X” faz da volta de veteranos afro-americanos ao Vietnã uma rocambolesca procura dos restos mortais de seu amigo e líder do grupo, morto em combate, e de barras de ouro que estavam transportando em missão mas que acabaram por deixarem enterradas.
O diretor sobrecarrega o longo filme —156 minutos— com arquivos de época, falas de Muhammad Ali, Angela Davis entre outros na intenção de situar uma história particular no contexto mais amplo da história dos Estados Unidos e da presença dos afro-americanos desde a escravidão ao movimento Black Lives Matter.
Com problemas de edição, como elipses inesperadas e alongamentos desnecessários, o filme é embalado pelas músicas de Marvin Gaye —as canções mais suaves e elegantes para falar de violência. Essa lição Lee também não segue.
“Destacamento Blood” se sustenta em atuações corretas, contudo sem destaque em meio às belas paisagens do Vietnã, com pouco uso dramático do espaço. Logo no início, a festa descontraída em que que os veteranos adentram com um cartaz de “Apocalypse Now” ao fundo é um achado irônico que fez lembrar a sátira de “A Hora do Show”.
Mas, na maior parte, o diretor leva um pouco a sério demais sua trama a culminar nos monólogos de Paul, papel de Delroy Lindo, veterano deslocado na volta para casa e eleitor de Trump. Ele vê o amigo morto e repete a palavra “loucura”, como numa paródia de Marlon Brando no filme de Coppola, que repete a palavra “horror”.
Diante do recente e brutal assassinato de George Floyd e das manifestações geradas a partir de mais esta morte pelas forças policiais, comuns tanto nos EUA quanto no Brasil, sem dúvida, a Netflix lança, de forma oportuna e oportunista, “Destacamento Blood”.
Spike Lee se arriscou ao fazer um filme sobre Malcolm X conjugando espetáculo e política, se aliando a uma nova geração de diretores e ativistas.
Algo de diferente acontece em “Destacamento Blood”. Não parece ser por acaso que a escolha final seja pela presença de Martin Luther King, numa fala sobre a integração afroamericana, e a última expressão pronunciada no filme seja “be safe”. As minorias sempre pagaram um preço pela segurança americana. Sintonizado com nosso tempo, Lee está mais interessado na nação do que nas relações coloniais por trás da Guerra do Vietnã.
Nem sempre estamos à altura do que vivenciamos nem conseguimos evocar o passado de forma que abra novas perspectivas para o presente. A urgência não justifica o bom-mocismo simplificador.
“Destacamento Blood” quase apaga o maior desastre militar americano e seu fracasso colonial ao terminar numa grande conciliação de pais e filhos, mortos e vivos, vietnamitas e americanos, negros e brancos. O épico vira grandiloquente, o trágico só consegue ser pomposo. Ainda teremos que esperar mais por um filme que esteja à altura da experiência dos afro-americanos no Vietnã.