Folha de S.Paulo

Bolsonaro tira violência policial de balanço anual

Especialis­tas apontam falta de transparên­cia, e ministério diz que dados têm inconsistê­ncias e serão divulgados após estudo complement­ar

- Rogério Pagnan

O governo excluiu do relatório anual dos direitos humanos indicadore­s de violência policial praticada no Brasil em 2019, o primeiro ano da gestão Jair Bolsonaro. Para o Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos, há inconsistê­ncia nos dados. O documento é um dos principais termômetro­s do problema no país.

são paulo O governo federal excluiu do relatório anual dos direitos humanos, o Disque Direitos Humanos, indicadore­s de violência policial praticada no Brasil em 2019, o primeiro ano da gestão Bolsonaro. Segundo o Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos, responsáve­l pela divulgação, há inconsistê­ncia nos dados.

O relatório é considerad­o um dos principais termômetro­s disponívei­s no país sobre a violação dos direitos humanos. Por isso, os números poderiam ajudar a entender como se comportara­m as forças de segurança, em especial as PMs, naquele ano.

O relatório é produzido com base em denúncias feitas ao Disque 100, canal que atende relatos de violação de direitos humanos no país. Ele inclui violência de qualquer ordem, como a praticada contra crianças, adolescent­es e idosos —e violência policial.

“O serviço pode ser considerad­o como ‘pronto-socorro’ dos direitos humanos, pois atende graves situações de violações que acabaram de ocorrer ou que ainda estão em curso”, diz nota explicativ­a do governo em 2018,

Para especialis­tas ouvidos pela Folha, essa pode ser a primeira vez que o relatório deixa de divulgar dados de violência policial. Nos documentos mais recentes, o indicador vinha tendo aumento constante. Em 2016, as denúncias chegaram a 1.009 casos, no seguinte passou para 1.319 (alta de 30,7%), já em 2018 as queixas chegaram a 1.637, acréscimo de 24%.

O relatório tem ainda, por outro lado, dados de violações de direitos humanos cometidas em delegacias (administra­das por policiais civis).

Para Ariel de Castro Alves, advogado e membro do grupo Tortura Nunca Mais, a opção por não divulgar parece “algo sob encomenda”, voltado às bases de Bolsonaro, “onde ele tem mais tem apoio, que são as policiais estaduais. Principalm­ente os militares”, diz.

Alves vê o Disque Direitos Humanos como o mais importante documento sobre violação dos direitos humanos no país, principalm­ente nas áreas da infância e da adolescênc­ia.

“É inaceitáve­l e inusitado não ter a violência policial no rol de violações de direitos humanos. Isso é fazer de conta que a ela não existe no Brasil”, afirma.

Para o presidente da Comissão Nacional dos Direitos Humanos da OAB, Hélio Leitão, a exclusão desses dados por parte da gestão não causa nenhuma surpresa, pelo histórico de falta de transparên­cia em outros casos.

“Todos os indicativo­s apontam para um aumento vertiginos­o da violência policial e da letalidade policial. Isso no país inteiro”, continua Leitão.

“Há dados, para ficarmos apenas em um estado, onde essa questão é crônica, de que em 2019 a letalidade policial aumentou em 92% no Rio de Janeiro.”

Ele diz ver uma ligação direta do aumento da violência

Ariel de Castro Alves advogado e membro do grupo Tortura Nunca Mais

policial e os discursos de gestores públicos como o governador do Rio, Wilson Witzel.

Para ele o fenômeno também parte do Palácio do Planalto. “Temos aí um presidente que fomenta esse discurso da violência, esse discurso da eliminação do outro”, afirma.

Tanto Alves quanto Leitão dizem desconhece­r outro momento em que esses dados tenham deixado de ser publicados pelo governo.

Para o promotor de Justiça Antonio Suxberger, do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), falta no país uma base de dados sólida para acompanham­ento dos casos de violência policial a fim de orientar políticas públicas.

Segundo ele, o Disque 100 é mais um canal de comunicaçã­o e tomada de providênci­as imediatas e menos um meio para construir base dados.

“Nós precisamos qualificar e aprimorar as bases de dados das próprias secretaria­s das seguranças públicas e também do Ministério da Justiça. A chave está por ali.”

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou nota na qual demonstra preocupaçã­o com a não divulgação.

“A falta de transparên­cia do governo federal e as reiteradas tentativas de alteração de metodologi­a de dados em diferentes fontes —mortes por Covid-19, números do desemprego, entre outros— colocam em dúvida a veracidade das informaçõe­s divulgadas pelo executivo nacional. Mudar a metodologi­a dessas pesquisas ocasiona, também, em impossibil­itar uma comparação da série histórica”, diz o texto.

Procurado, o Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos disse que os dados referentes a violações dos direitos humanos tendo como suspeitos os agentes de segurança não foram divulgados porque “foram identifica­das inconsistê­ncias nos registros”.

“Há registros com marcador de suspeito como agente policial, mas, na descrição, as informaçõe­s são contraditó­rias, assim como há registros que não possuem marcador, mas as informaçõe­s contêm relação com violação supostamen­te praticada por agente policial”, diz nota.

Ainda segundo o governo, para que haja “fidedignid­ade dos dados apresentad­os”, os registros foram reservados para estudo aprofundad­o e “posterior divulgação, sem prejuízo aos demais dados de relevância para população”.

“Diante disso, confirmamo­s que os dados serão divulgados”, diz nota. O governo diz não ter previsão de quando isso irá acontecer.

O Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos diz ainda que a decisão foi técnica e não foi tomada em atenção a pedidos específico­s.

“A opção de divulgação posterior foi técnica, para garantia da veracidade da informação, não ocorrendo qualquer pedido de não divulgação ou atraso por parte de qualquer autoridade ou entidade. Lembramos que a taxonomia de violações adotada até 2019 se manteve sem alterações daquela produzida nos sistemas do Disque Direitos Humanos desde 2011”, diz a pasta

“É inaceitáve­l e inusitado não ter a violência policial no rol de violações de direitos humanos. Isso é fazer de conta que a ela não existe no Brasil

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