Bolsonaro tira violência policial de balanço anual
Especialistas apontam falta de transparência, e ministério diz que dados têm inconsistências e serão divulgados após estudo complementar
O governo excluiu do relatório anual dos direitos humanos indicadores de violência policial praticada no Brasil em 2019, o primeiro ano da gestão Jair Bolsonaro. Para o Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos, há inconsistência nos dados. O documento é um dos principais termômetros do problema no país.
são paulo O governo federal excluiu do relatório anual dos direitos humanos, o Disque Direitos Humanos, indicadores de violência policial praticada no Brasil em 2019, o primeiro ano da gestão Bolsonaro. Segundo o Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos, responsável pela divulgação, há inconsistência nos dados.
O relatório é considerado um dos principais termômetros disponíveis no país sobre a violação dos direitos humanos. Por isso, os números poderiam ajudar a entender como se comportaram as forças de segurança, em especial as PMs, naquele ano.
O relatório é produzido com base em denúncias feitas ao Disque 100, canal que atende relatos de violação de direitos humanos no país. Ele inclui violência de qualquer ordem, como a praticada contra crianças, adolescentes e idosos —e violência policial.
“O serviço pode ser considerado como ‘pronto-socorro’ dos direitos humanos, pois atende graves situações de violações que acabaram de ocorrer ou que ainda estão em curso”, diz nota explicativa do governo em 2018,
Para especialistas ouvidos pela Folha, essa pode ser a primeira vez que o relatório deixa de divulgar dados de violência policial. Nos documentos mais recentes, o indicador vinha tendo aumento constante. Em 2016, as denúncias chegaram a 1.009 casos, no seguinte passou para 1.319 (alta de 30,7%), já em 2018 as queixas chegaram a 1.637, acréscimo de 24%.
O relatório tem ainda, por outro lado, dados de violações de direitos humanos cometidas em delegacias (administradas por policiais civis).
Para Ariel de Castro Alves, advogado e membro do grupo Tortura Nunca Mais, a opção por não divulgar parece “algo sob encomenda”, voltado às bases de Bolsonaro, “onde ele tem mais tem apoio, que são as policiais estaduais. Principalmente os militares”, diz.
Alves vê o Disque Direitos Humanos como o mais importante documento sobre violação dos direitos humanos no país, principalmente nas áreas da infância e da adolescência.
“É inaceitável e inusitado não ter a violência policial no rol de violações de direitos humanos. Isso é fazer de conta que a ela não existe no Brasil”, afirma.
Para o presidente da Comissão Nacional dos Direitos Humanos da OAB, Hélio Leitão, a exclusão desses dados por parte da gestão não causa nenhuma surpresa, pelo histórico de falta de transparência em outros casos.
“Todos os indicativos apontam para um aumento vertiginoso da violência policial e da letalidade policial. Isso no país inteiro”, continua Leitão.
“Há dados, para ficarmos apenas em um estado, onde essa questão é crônica, de que em 2019 a letalidade policial aumentou em 92% no Rio de Janeiro.”
Ele diz ver uma ligação direta do aumento da violência
Ariel de Castro Alves advogado e membro do grupo Tortura Nunca Mais
policial e os discursos de gestores públicos como o governador do Rio, Wilson Witzel.
Para ele o fenômeno também parte do Palácio do Planalto. “Temos aí um presidente que fomenta esse discurso da violência, esse discurso da eliminação do outro”, afirma.
Tanto Alves quanto Leitão dizem desconhecer outro momento em que esses dados tenham deixado de ser publicados pelo governo.
Para o promotor de Justiça Antonio Suxberger, do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), falta no país uma base de dados sólida para acompanhamento dos casos de violência policial a fim de orientar políticas públicas.
Segundo ele, o Disque 100 é mais um canal de comunicação e tomada de providências imediatas e menos um meio para construir base dados.
“Nós precisamos qualificar e aprimorar as bases de dados das próprias secretarias das seguranças públicas e também do Ministério da Justiça. A chave está por ali.”
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou nota na qual demonstra preocupação com a não divulgação.
“A falta de transparência do governo federal e as reiteradas tentativas de alteração de metodologia de dados em diferentes fontes —mortes por Covid-19, números do desemprego, entre outros— colocam em dúvida a veracidade das informações divulgadas pelo executivo nacional. Mudar a metodologia dessas pesquisas ocasiona, também, em impossibilitar uma comparação da série histórica”, diz o texto.
Procurado, o Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos disse que os dados referentes a violações dos direitos humanos tendo como suspeitos os agentes de segurança não foram divulgados porque “foram identificadas inconsistências nos registros”.
“Há registros com marcador de suspeito como agente policial, mas, na descrição, as informações são contraditórias, assim como há registros que não possuem marcador, mas as informações contêm relação com violação supostamente praticada por agente policial”, diz nota.
Ainda segundo o governo, para que haja “fidedignidade dos dados apresentados”, os registros foram reservados para estudo aprofundado e “posterior divulgação, sem prejuízo aos demais dados de relevância para população”.
“Diante disso, confirmamos que os dados serão divulgados”, diz nota. O governo diz não ter previsão de quando isso irá acontecer.
O Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos diz ainda que a decisão foi técnica e não foi tomada em atenção a pedidos específicos.
“A opção de divulgação posterior foi técnica, para garantia da veracidade da informação, não ocorrendo qualquer pedido de não divulgação ou atraso por parte de qualquer autoridade ou entidade. Lembramos que a taxonomia de violações adotada até 2019 se manteve sem alterações daquela produzida nos sistemas do Disque Direitos Humanos desde 2011”, diz a pasta
“É inaceitável e inusitado não ter a violência policial no rol de violações de direitos humanos. Isso é fazer de conta que a ela não existe no Brasil