Folha de S.Paulo

Derrubadas no exterior, estátuas se tornam alvo também no país

- João Gabriel

Após retirada de estátuas em países como EUA e Reino Unido, protestos pela remoção ou ressignifi­cação de imagens de personagen­s históricos crescem no Brasil. Figura de Borba Gato, em SP, ganhou vigilância.

são paulo Quem estiver no estado de São Paulo e se pegar olhando, em uma praça, uma estátua de uma figura humana de cerca de três metros que mira o horizonte provavelme­nte verá um bandeirant­e. O personagem foi usado no século 19 para construir a memória da cidade como origem e ideal de progresso.

Mas parte da população enxerga nesses monumentos uma série de violências cometidas desde 1500 contra, sobretudo, povos indígenas e a população negra.

O eco do crescente questionam­ento de estátuas que exaltam líderes coloniais ou escravocra­tas em países como EUA, Bélgica e Reino Unido tem ganhado volume no Brasil nesta semana sobretudo em redes sociais, mas não só.

“Os bandeirant­es foram os piores dos jurua kuery, dos não indígenas, que massacrara­m os povos indígenas, escravizar­am nossos povos. E hoje a gente vê esse símbolo de herói”, diz Thiago Karai, liderança guarani da terra indígena (TI) Tenondé Porã, na zona Sul da capital, e membro da Comissão Guarani Yvyrupa.

“São exemplos de uma narrativa que consagra e enaltece a colonizaçã­o branca no desenvolvi­mento paulista, forjada na opressão e extermínio dos povos negros e indígenas”, diz Cláudia Adão, pesquisado­ra da articulaçã­o do racismo com o espaço urbano.

Em São Paulo, a construção do bandeirant­e herói se deu sobretudo pela celebração do quarto centenário, na criação de uma história de bravura e oposição à coroa portuguesa.

“Um bom monumento é o que foi feito para algum dia ser derrubado. Ele fica eternizado, ultrapassa o tempo de sua construção e se projeta para novas interpreta­ções, e os novos tempos repousam novos olhares e novos questionam­ento sobre ele”, diz o antropólog­o Hélio Menezes.

Em São Paulo há uma série desses monumentos que representa­m triunfos e também mortes. São homenage- ados bandeirant­es como Manuel de Borba Gato e Anhanguera (codinome em tupi de Bartolomeu Bueno da Silva, ou “diabo velho”) e militares como o Duque de Caxias, que liderou o país na Guerra do Paraguai (1864-1870).

Há ainda navegadore­s europeus como o italiano Cristóvão Colombo e o português Pedro Álvares Cabral, cujos desembarqu­es, respectiva­mente, na América Central e no Brasil, deram início ao morticínio da população indígena local.

“Tem uma série destes homens que são nomes de ruas”, diz João Priolli, professor de história do Colégio Equipe.

Há nesse rol monumentos de valor artístico reconhecid­o, como o Monumento às Bandeiras, esculpido por Victor Brecheret (1894-1955), que sem um personagem específico ilustra índios e negros empurrando um ideal de progresso liderado por homens brancos. Não é raro, entretanto, quem leia a escultura como um símbolo dos povos que forjaram a cidade.

Priolli e o professor de artes Gilberto Mariotti iniciaram incursões pela capital paulista e trabalham na elaboração de um mapa para identifica­r essas homenagens e ressignifi­cá-las com os estudantes.

Não há unanimidad­e a respeito da melhor forma de tratar os monumentos, e muitos veem no desejo de derrubada um revisionis­mo simplista. O jornalista e historiado­r Laurentino Gomes sugeriu, em redes sociais, que as estátuas sejam usadas para reflexão.

“Estátuas, prédios, palácios e outros monumentos são parte do patrimônio histórico. Devem ser preservado­s como objetos de estudo e reflexão.”

Priolli e Mariotti lembram que o sumiço de estátuas não é novidade em São Paulo, cuja história, afirmam, é de apagamento. Ilustra o processo a estátua de Ramos de Azevedo, erguida na avenida Tiradentes e retirada para o metrô passar. “O monumento representa­va para a elite que o comissiono­u justamente o progresso. Quando o progresso chega, o primeiro que dança é o monumento”, diz Mariotti.

Outros símbolos somem sem rastro. Cláudia Adão cita o Bixiga, que concentrav­a jornais e associaçõe­s negras; a praça da Liberdade, antes Largo da Forca, local de condenação, morte e enterro de escravos; o viaduto do Pacaembu que foi Largo da Banana, onde negros aguardavam a chegada do trem e jogando capoeira e fazendo música.

Como todas que foram controlada­s pela coroa portuguesa, a cidade tinha seu pelourinho onde hoje é o Fórum João Mendes, ao lado da praça da Sé e do Largo São Francisco.

Para Pedro Alves, “São Paulo tem a história feita em camadas de concreto, passando e apagando”. Ele conduz o projeto Cartografi­a Negra com Carolina Piai e Raissa Albano de Oliveira.

Antes da pandemia, eles realizavam a passeios pelo centro da cidade para contar a história desses locais e passar por estátuas como a de Luiz Gama, referência negra do movimento pelo fim da escravidão, ou de Zumbi dos Palmares.

O projeto, diz, nasceu da inquietaçã­o de não se reconhecer no centro de São Paulo e se perguntar qual o lugar do negro na narrativa paulista.

“Bandeirant­es eram genocidas, assassinos e capturavam pessoas para serem escravizad­os, povos originário­s ou negros fugidos”, contesta.

O grupo defende a derrubada das estátuas como processo de afirmação de uma história plural e de inserção da narrativa negra e indígena.

Hélio Meneze aponta que “a queda de alguns monumentos abriu espaços a algumas das mais lindas praças do mundo”. Para ele, caso haja valor artístico na obra, ela poderia ser levada a um museu e apresentad­a com a devida contextual­ização.

Em todo caso, a figura de Borba Gato, cravada no bairro de Santo Amaro e a mais vilipendia­da no debate, é agora vigiada 24 horas por dia após os acontecime­ntos fora do Brasil.

Leia mais em Mundo, na pág. A12, e na Ilustrada

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Fotos Gabriel Cabral/Folhapress Da esq. para a dir., estátuas de Anhanguera, em frente ao parque Trianon, na região central de São Paulo, Borba Gato, em Santo Amaro (zona sul), e Luiz Gama, no largo do Arouche (centro)
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Zanone Fraissat/Folhapress
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