Folha de S.Paulo

Ditadura e fascismo

- Fernando Haddad Professor universitá­rio, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e exprefeito de São Paulo. Escreve aos sábados

“O brasileiro perdeu até o direito de virar estatístic­a.” Essa foi a reação do jornalista Márvio dos Anjos, nas redes sociais, às tentativas frustradas do Ministério da Saúde, sob gestão do general Pazuello, de mascarar os números da pandemia. O comentário não poderia ser mais apropriado.

O empresário Carlos Wizard, colaborado­r do governo, acabou desistindo de assumir a secretaria que promoveria a mágica recontagem. O limite da ideologia, como se sabe, são os negócios, e a iniciativa pegou muito mal.

Ninguém mais se lembra de quando Bolsonaro previra que as mortes de Covid-19, no ano, não excederiam as mortes de H1N1 em 2019: cerca de 800. Não só já atingimos nesta sexta (12) a segunda posição em número de mortes no mundo como há previsões sombrias de que, por agosto, superaremo­s os EUA. Brasil acima de todos.

Apesar de tudo, creio que o “e daí?” bolsonaris­ta pode vencer. Explico.

Depois de lutar contra todas as evidências sobre a gravidade da pandemia, Bolsonaro promoveu um giro tático que condiz com a natureza do seu governo.

Esconder mortos é coisa de ditadura. E o que acontece no nosso país, de erosão da democracia “desde dentro”, é algo bem diferente de um golpe clássico. Uma das falhas da palavra de ordem “não vai ter golpe” era passar a ideia subjacente de que havia um plano que seria executado em data determinad­a, quando, na verdade, estávamos diante de um “processo”, que, aliás, está em curso. Não há uma via única para suprimir a democracia. O golpe clássico é apenas uma das formas. O método fascista é algo muito distinto e, em certas circunstân­cias, mais eficaz. As ciências sociais conhecem a diferença.

O que causa algum constrangi­mento ao bolsonaris­mo é o caráter pandêmico da crise, ou seja, o fato de ela ser um assunto global. A repercussã­o externa dos nossos números o preocupa, ainda que levemente. Mas, internamen­te, Bolsonaro sabe que pode trivializá-los.

Reportagem desta Folha contabiliz­a que a Covid-19 já matou mais do que trânsito em 2019 no Brasil. A questão é justamente essa. As mortes violentas no Brasil, sem Covid-19, são parte do nosso dia a dia — no trânsito, contra as favelas, dentro de casa, nos presídios, no campo etc. Por que o pânico diante de uma “gripe”, e ainda passageira?

O grande mérito da democracia moderna é contar com filtros que obstruem a emergência do lado podre de uma sociedade que sempre flertou com a morte. Nesse flerte reside a naturaliza­ção cotidiana da barbárie. O único legado do fascismo é um rastro de destruição: não se pode acusá-lo de inércia; ele é um agito permanente e sem rumo.

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