Folha de S.Paulo

À roda do quarto

- Alvaro Costa e Silva

rio de janeiro “Viagem à Roda do Meu Quarto” —obra central na formação do romance moderno, cujo título traduz o comportame­nto a que muitos se negaram durante a pandemia— foi escrita quando Xavier de Maistre passou 42 dias preso por causa de um duelo à espada.

Aos 38 anos, Michel de Montaigne meteu-se numa torre, em desfrute de seus pensamento­s, dedicandos­e por duas décadas às mil páginas de “Os Ensaios”. “É preciso trazê-la de volta e refugiá-la em si: essa é a verdadeira solidão, e que pode ser desfrutada no meio das cidades e das cortes dos reis; mas a desfrutamo­s mais convenient­emente à parte”, escreveu ele.

Proust, como se sabe, deitava-se cedo. Em seus últimos anos, doente e obcecado por terminar a longa busca do tempo perdido, construiu um mundo às avessas dentro do quarto: as paredes cobertas de cortiça, as cortinas cerradas dia e noite, o ambiente enfumaçado pelas fumigações contra a asma, alimentand­o-se de xícaras de café com leite e croissants. Uma campainha chamava a governanta, que lhe trocava diariament­e os lençóis da cama. Com medo de adquirir uma infecção, chegou a comprar uma espécie de máquina de formol, onde mergulhava a correspond­ência antes de abri-la.

A cama era o santuário de Juan Carlos Onetti. Expatriado em Madri depois de uma existência agitada (fugiu de casa aos 14 anos, foi garçom, cambista, contraband­ista, compositor de tangos), o uruguaio raramente punha os pés na rua. Ficava na horizontal, com suas roupas mais confortáve­is, garrafa de vinho ou de uísque ao alcance da mão, o cigarro que parecia não se apagar nunca entre os dedos, a cara coberta pelos enormes óculos. Onetti escrevia a mão, lentamente, em velhos cadernos. Mas preferia ler romances policiais —quanto mais vagabundos, melhor (tinha pilhas de James Hadley Chase).

Na época desses escritores havia uma coisa estranha: vida privada.

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