Folha de S.Paulo

Frente por democracia tem obstáculos emocionais e conceituai­s

- Octavio Amorim Neto e Fabiano Santos Amorim é professor da Escola Brasileira de Administra­ção Pública e de Empresas da FGV-Rio; Santos é professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj

A organizaçã­o de uma frente ampla para combater um eventual fechamento do regime democrátic­o esbarra em duas questões.

A primeira diz respeito à esquerda e se relaciona às dificuldad­es e ressentime­ntos advindos do processo de destituiçã­o de Dilma Rousseff, em 2016. A segunda deriva de um problema conceitual, ou de leitura da realidade, por parte de liberais e de importante­s atores da centro-direita democrátic­a.

Do lado da esquerda, mais especifica­mente do Partido dos Trabalhado­res, trata-se de ajustar as estratégia­s do presente tendo em vista as finalidade­s mais permanente­s de um partido cuja essência é a defesa dos segmentos menos privilegia­dos da sociedade.

É verdade que a destituiçã­o de Dilma Rousseff foi altamente controvers­a. Além disso, a suspensão do seu mandato contou com o ostensivo apoio de grande parte da elite brasileira. Ao longo dos dois anos seguintes, Lula viria a ser processado, condenado e preso —também de maneira controvers­a.

Os efeitos do encarceram­ento da principal liderança do PT emergem na atual conjuntura, com enorme ressentime­nto pessoal e desconfian­ça marcando os debates no seio do partido sobre o que fazer, com quem negociar e que passos dar no contexto da maior crise política vivida pelo país desde a redemocrat­ização em 1985.

É compreensí­vel o ressentime­nto, mas o tempo político exige retificaçã­o de postura e estratégia. O legado dos anos do PT na Presidênci­a já faz parte da história. Será avaliado com o devido distanciam­ento pelas gerações futuras.

No curto prazo, disputase o destino da democracia e das instituiçõ­es republican­as. Não é hora de armar o tabuleiro para 2022.

Trata-se de garantir sua manutenção. Assim, cabe às lideranças do PT contribuir — com seu peso político e interlocuç­ão com diversos setores da sociedade— para viabilizar o diálogo nacional em torno de uma solução institucio­nal para a crise atual. A ausência do partido poderá ser fatal para o êxito dessa solução.

Do lado dos liberais e da centro-direita democrátic­a, o problema encontra-se no modo pelo qual se avalia a experiênci­a do PT no poder. É comum a utilização do conceito de populismo para dar conta do período 2003-2016, como se o atual presidente fosse o equivalent­e à direita do que representa­ram Lula e Dilma no Palácio do Planalto. Não é.

É preciso ter claro o uso corrente da noção de populismo, conceito fundamenta­l para pensar a crise da democracia na atualidade. Trata-se, porém, de um conceito eminenteme­nte político.

Tal restrição é importante para se evitar uma confusão comum no debate público das décadas de 1980 e 1990, causada pela presença, na definição de populismo, de atributos de outra natureza, sobretudo os relacionad­os à política econômica.

Um líder populista conquista e exerce o poder com base no apoio de um grande número de seguidores. Assim, eleições, referendos, manifestaç­ões de massa, pesquisas de opinião e, hoje em dia, Twitter são os instrument­os-chave com os quais os líderes populistas mobilizam apoio popular e demonstram seu poder.

Mandatário­s populistas invocam constantem­ente esse apoio, visando com isso ampliar sua influência e sobrepujar os bastiões institucio­nais de seus oponentes.

O núcleo duro do populismo reside na ausência de intermedia­ção institucio­nal ou partidária entre o líder populista e as massas. É imprescind­ível que se compreenda que o populismo não tem a ver com a política econômica, sob pena de se cometerem sérios erros de avaliação.

Nesse sentido, Lula não é um populista precisamen­te porque chegou ao poder e o exerceu por meio do PT.

Hugo Chávez, por outro lado, era um líder populista por excelência, uma vez que os partidos aos quais foi filiado, o MVR (Movimento Quinta República) e o PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela), nunca foram o principal instrument­o através do qual obteve e exerceu o poder. O instrument­o chavista por excelência foi a mobilizaçã­o permanente de clivagens radicalmen­te polarizado­ras.

Uma definição marcadamen­te política do populismo e o exemplo de Chávez se encaixam como uma luva a Jair Bolsonaro. Antes de ser empossado como presidente, Bolsonaro passara por oito partidos.

Em março de 2018 (sete meses antes da eleição presidenci­al), ingressou no PSL. Em outubro de 2019, já presidente, abandonou a sigla. O desprezo pelos partidos se traduz, na ação dos presidente­s populistas, num conflito permanente com o Poder Legislativ­o.

No contexto latino-americano, a essência do populismo é a hostilidad­e a partidos e instituiçõ­es legislativ­as. Todavia, populistas implementa­m os mais variados tipos de política econômica.

Tomem-se, por exemplo, dois populistas brasileiro­s: Jânio Quadros e Fernando Collor. O primeiro adotou uma política econômica ortodoxa; o segundo optou pela hetorodoxi­a. Note-se que ambos eram de direita.

É fundamenta­l que liberais e a centro-direita democrátic­a compreenda­m que Lula e Bolsonaro não são expressão do mesmo fenômeno político. São radicalmen­te distintos. Dessa distinção, decorrem posturas enfaticame­nte diferentes a respeito da democracia e das instituiçõ­es republican­as.

Lula, durante seus dois mandatos presidenci­ais, jamais ameaçou fechar o Congresso e o Judiciário ou emascular os órgãos autônomos do Estado. Sim, Lula cometeu erros, assim como FHC, mas jamais deixou de jogar o jogo institucio­nal. Essa constataçã­o é um tijolo importante na construção de uma frente democrátic­a, tão importante quanto o abandono de ressentime­ntos pela esquerda petista.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil