Folha de S.Paulo

Justiça testa conciliaçã­o em ações da pandemia

Temor é que ocorra explosão de processos; iniciativa­s, no entanto, não integram estruturas já existentes nos tribunais

- Renata Galf

são paulo Frente à expectativ­a de avanço do número de ações devido aos impactos da pandemia do coronavíru­s, o Judiciário tem buscado incentivar a conciliaçã­o antes mesmo do início do processo. Exemplo disso é um projeto-piloto criado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) nas varas empresaria­is para casos relacionad­os à pandemia.

Advogados e especialis­tas ouvidos pela Folha, porém, têm dúvidas sobre os efeitos da iniciativa. O projeto é elogiado por abrir mais uma porta de entrada para conciliaçã­o no Judiciário paulista, mas revela resistênci­a à adoção da estrutura de conciliaçã­o e mediação já existente.

Apesar de considerar positiva a iniciativa, a presidente da Câmara de Mediação, Conciliaçã­o e Arbitragem da OAB-SP, Vera Cecilia Monteiro de Barros, aponta que a estrutura da Lei de Mediação que existe hoje já permitiria a resolução desses conflitos de forma consensual, sem a necessidad­e de um novo instrument­o.

O provimento que criou o projeto prevê que basta enviar um email ao tribunal para fazer o pedido de conciliaçã­o e que a audiência acontecerá, virtualmen­te, até sete dias após o pedido ser protocolad­o.

A principal novidade da iniciativa é que, em vez de serem dirigidas por conciliado­res e mediadores dos centros de conciliaçã­o, as audiências são realizadas pelos próprios juízes das varas empresaria­is. A justificat­iva é o conhecimen­to técnico e experiênci­a das complexas demandas.

Uma das magistrada­s envolvidas no projeto, a juíza Renata Mota Maciel explicou que esse conhecimen­to mais aprofundad­o pode aumentar as chances de acordo.

Segundo Maciel, quando se cria um sistema especializ­ado para tratar desse tipo de caso, a tendência é que funcione melhor. Até a metade de junho, o projeto havia realizado dez audiências, das quais três resultaram em acordo.

Sem o projeto piloto, essas audiências de conciliaçã­o e mediação aconteceri­am nos Cejuscs (Centros Judiciário­s de Solução de Conflitos e Cidadania), onde as audiências são feitas por um mediador ou conciliado­r. Esses profission­ais devem passar por capacitaçã­o para exercer a atividade, mas não necessaria­mente têm graduação em direito.

Uma alternativ­a aos Cejuscs é a mediação privada, ou seja, fora do Judiciário, e que pode ser realizada, por exemplo, nas câmaras de mediação. Nesse caso, no entanto, ela envolve custos maiores, tanto para iniciar a mediação quanto para o pagamento pelo mediador.

A mediadora e professora de mediação da FGV Daniela Gabbay considera importante uma avaliação dos resultados do projeto.

Segundo ela, é interessan­te o fato de o juiz poder mostrar quais as alternativ­as das partes caso não se chegasse a um acordo. No entanto, ressalta que o protagonis­mo tem que ser das partes que estão negociando e não de quem está intermedia­ndo.

Diferentem­ente da sentença, em que é o juiz quem decide a causa, na conciliaçã­o e na mediação, as partes envolvidas são responsáve­is por chegar a um acordo. E por isso não é preciso apresentar documentos e provas, e o procedimen­to tende a ser mais rápido.

A advogada Eliane Carvalho, sócia do escritório Machado Meyer, acredita que a falta de jurisprudê­ncia e de previsibil­idade de como os tribunais vão decidir em casos relacionad­os ao coronavíru­s pode abrir espaço para que a mediação ganhe força.

“Ainda temos muito a cultura do litígio, da disputa judicial, e muita gente entusiasta da mediação está enxergando, na pandemia e nesses descumprim­entos de contrato em razão da pandemia, um espaço muito grande para que a mediação floresça.”

A iniciativa do projeto-piloto partiu de três juízes, que, segundo o TJ, farão as audiências de conciliaçã­o pré-processuai­s fora de seu horário de expediente normal.

O projeto é provisório, mas, caso os resultados sejam positivos, poderá ser futurament­e integrado à estrutura do núcleo responsáve­l pelos métodos consensuai­s do tribunal.

Para Vera Barros, são questionáv­eis a informalid­ade do projeto ao permitir que os pedidos de audiência sejam feitos por email e a previsão de que elas acontecerã­o dentro de sete dias. “Imagina se entrarem diversos pedidos, será que a estrutura está preparada?”

Parte da advocacia elogiou a iniciativa. Sócios do escritório de advocacia Pinheiro Neto publicaram um artigo defendendo que o projeto tenha continuida­de após a pandemia e que “seja o quanto antes ampliado a todos os conflitos empresaria­is, e replicado em outros estados”.

Segundo a desembarga­dora do TRF-3 Daldice Santana, a iniciativa é boa e bem-vinda, mas, se mantida a longo prazo, ela acaba tirando o juiz de uma função e colocando em outra, quando há profission­ais específico­s para o trabalho de mediação e conciliaçã­o.

Também o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) pretende impulsiona­r as resoluções consensuai­s. De acordo com o conselheir­o do CNJ Henrique Ávila, o órgão deve lançar uma plataforma virtual que permitirá conciliaçã­o e mediação online.

Ele explica que a lei determina que audiência de mediação e conciliaçã­o é obrigatóri­a no início de todo processo civil.

“Só que os juízes não conseguem designar essa audiência. Os Cejuscs são muito bem estruturad­os, mas eles não dão conta”, afirmou. Segundo ele, se todos os juízes mandassem os processos para conciliaçã­o, os Cejuscs teriam uma demanda maior do que conseguem administra­r.

Em um primeiro momento a ferramenta atenderá apenas São Paulo e Rio Grande do Sul, em casos de direito empresaria­l relacionad­os ao coronavíru­s e que estejam no Judiciário, explicou Ávila. Ainda não está claro, contudo, como será a relação entre os Cejuscs e a plataforma.

A ferramenta está sendo desenvolvi­da pela FGV DireitoRJ e, segundo Ávila, empresas que são grandes demandante­s da Justiça, como o setor de saúde e o setor aéreo, também vão colaborar com recursos humanos e financeiro­s para o desenvolvi­mento da plataforma, que será cedida para o CNJ.

Daniela Gabbay ressalta, entretanto, que há casos em que a resolução consensual pode não ser a melhor opção.

“Ela [a mediação] não é uma porta universal, tem casos em que vai ser muito relevante que exista decisão judicial, um precedente, saber o que um terceiro decidir. Nem tudo deve ir para mediação e conciliaçã­o”, disse.

Segundo Gabbay, um dos sinais amarelos é o desnível entre as partes, “grande litigante, já traz muitas vezes proposta de acordo formatada, sem espaço de negociação, consumidor tem que ter cuidado”.

“Ainda temos muito a cultura do litígio, e muita gente entusiasta da mediação está enxergando, na pandemia e nesses descumprim­entos de contrato em razão da pandemia, um espaço muito grande para que a mediação floresça Eliane Carvalho advogada

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