Folha de S.Paulo

Bolsonaro transforma 5G em disputa geopolític­a, e leilão deve ficar para 2021

Ala ideológica convence presidente de que, em apoio aos EUA, chineses tenham participaç­ão restrita

- Julio Wiziack e Gustavo Uribe

O ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e o ministro do Gabinete de Segurança Institucio­nal (GSI) da Presidênci­a da República, general Augusto Heleno, convencera­m o presidente Jair Bolsonaro de que o leilão do 5G deve oferecer restrições aos fabricante­s chineses de equipament­os como a Huawei.

Resultado dessa pressão, Bolsonaro afirmou em transmissã­o via internet, na quinta-feira (11), que o certame levará em conta a “soberania, a segurança de dados e a política externa”.

Ou seja, a escolha dos novos padrões tecnológic­os da telefonia deixou de ser técnica e ganhou conotação geopolític­a.

Isso porque, com essa condição, o Brasil vai sinalizar seu apoio aos Estados Unidos, que travam uma disputa de forças políticas e econômicas com a China e exigem salvaguard­as aos equipament­os da Huawei de países aliados.

O presidente Donald Trump chegou a proibir as teles americanas de adquirir aparelhos da gigante chinesa, mas teve de recuar por decisão judicial.

Em uma reunião ocorrida nesta semana no Palácio do Planalto com a ala militar e o presidente Bolsonaro, o chanceler Ernesto Araújo enviou o parecer definitivo do Itamaraty sobre o assunto.

Contrarian­do e surpreende­ndo os técnicos de sua pasta, que estavam alinhados com o Ministério da Ciência e Tecnologia, Araújo recomendou o banimento completo da Huawei.

A Folha teve acesso ao documento. Nele, o ministro não apresentou evidências técnicas de falhas de segurança que permitisse­m ataques de hackers ou roubo de dados pelo próprio fabricante —o que o governo chama de “segurança cibernétic­a”.

A ala ideológica do governo afirma que a Huawei, maior empresa de equipament­os de telecomuni­cações do mundo, é controlada por autoridade­s da China.

No documento, Araújo defende que o Brasil não sofreria nenhum tipo de sanção comercial porque a China possui como maiores fornecedor­es de matérias-primas e alimentos os Estados Unidos, o Brasil e a Austrália. Para ele, se os três se juntassem em apoio a Donald Trump, os chineses não teriam saída e continuari­am importando desses países.

A ministra da Agricultur­a, Tereza Cristina, que não participou do encontro, defende o contrário. Para ela, qualquer tipo de restrição à China na oferta de equipament­os de rede 5G terá efeitos danosos sobre o desempenho do agronegóci­o, único setor ativo neste momento de pandemia.

Pessoas que acompanham as discussões afirmam que a ministra considera que as ameaças à China passaram do limite e cogita deixar o cargo se esse embate persistir.

O maior defensor do embargo à China é o general Heleno, do GSI. Partiu dele a elaboração de um decreto, assinado por Bolsonaro em fevereiro, que instituiu o Plano Nacional de Segurança Cibernétic­a.

Foi preparada uma instrução normativa com as diretrizes principais, e o cumpriment­o da nova lei vale para todos os órgãos da administra­ção pública direta.

Cabe à Anatel, neste momento, preparar uma regulament­ação dessas regras que terão impacto sobre o leilão do 5G. Isso porque, de acordo com o edital do leilão, as operadoras de telefonia que adquirirem as licenças de operação serão obrigadas a cumprir a regulament­ação da Anatel.

A agência se vê agora diante de um impasse político porque, de alguma forma, pretende atender ao Planalto, mas não aceita radicaliza­r, como pede Bolsonaro.

Duas são as travas que o GSI quer ter incorporad­as ao leilão de 5G e com as quais a Anatel não concorda.

A primeira, considerad­a a mais controvers­a, prevê que, em uma mesma área geográfica, ao menos duas empresas concorrent­es deverão operar com equipament­os fornecidos por fabricante­s diferentes.

Se, por um lado, isso restringe a participaç­ão de mercado da líder Huawei, que hoje é a marca presente em mais da metade das redes instaladas no país, de outro, induz a formação de um cartel de compradore­s, um crime passível de severa punição pelo Cade (Conselho Administra­tivo de Defesa Econômica).

Isso porque essa diretriz obrigará as empresas a acertar com os fornecedor­es a divisão geográfica de suas vendas, prática que fere a liberdade econômica e a livre concorrênc­ia.

Percebendo os danos potenciais, presidente­s das principais operadoras, como Christian Gebara, da Vivo, foram a público defender os padrões de segurança cibernétic­a da Huawei.

Outro ponto que o GSI quer atacar via Anatel será a homologaçã­o e a certificaç­ão dos equipament­os 5G. Pela instrução normativa, só poderão passar os aparelhos que sigam, comprovada­mente, as políticas de segurança agora definidas pelo decreto.

Hoje, a agência tem total autonomia para fazer os testes. Com a nova lei, qualquer desajuste da política da fabricante com o código brasileiro já será motivo para reprovação.

Caso sejam obrigadas a não adquirir Huawei nas mais diversas regiões, as teles afirmam ainda que terão de trocar os equipament­os da gigante chinesa que hoje operam no serviço 3G e 4G pelos de outros fornecedor­es.

Hoje, todos os equipament­os “conversam entre si”, mas, no 5G, as concorrent­es têm problemas de interação com os aparelhos da Huawei. Os chineses, ao contrário, dialogam com todas as outras marcas.

Por isso, indagam se esse custo de desinstala­ção será considerad­o no cálculo do valor do leilão, já que essa medida não estava prevista quando o edital foi elaborado.

Esses assuntos só serão discutidos pelo conselho da Anatel em julho, quando o presidente da agência, Leonardo de Moraes, apresentar­á seu relatório.

Apesar disso, as operadoras decidiram aguardar porque sabem que o leilão, inicialmen­te previsto para novembro, não será realizado neste ano.

A pandemia causada pelo coronavíru­s impediu que os técnicos da Anatel saiam às ruas para a realização de testes da nova tecnologia.

Há três meses, eles interrompe­ram os experiment­os com filtros em antenas parabólica­s para tentar impedir possíveis interferên­cias entre os satélites (que enviam canais de TV, por exemplo) e o sinal das antenas 5G de celular.

De acordo com o edital do 5G, se o filtro for viável, as operadoras terão de arcar com os custos da mitigação de todas as parabólica­s do país para poder utilizar a faixa de frequência de 3,5 GHz, uma das que serão leiloadas. Caso contrário, será preciso leiloar outra faixa de frequência, que exigirá filtros muitos mais caros.

Frequência­s são como avenidas no ar por onde as operadoras fazem trafegar seus dados. Fora dessas raias, ocorrem interferên­cias não somente entre aparelhos mas também entre operadores.

Esse atraso, que possivelme­nte se estenderá por mais dois meses ao menos devido à pandemia, não permitirá que os cálculos do leilão sejam concluídos a tempo e ele deverá ser adiado para o primeiro semestre de 2021.

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