Folha de S.Paulo

Ainda não é hora de reabrir o comércio e relaxar isolamento

Pesquisado­r que integra o Consórcio Nordeste afirma que faltam coordenaçã­o nacional, plano estratégic­o e empatia com as vítimas

- João Valadares e João Pedro Pitombo

O médico e neurocient­ista Miguel Nicolelis, que coordena o comitê científico do Consórcio Nordeste, avalia que não é o momento de reabertura de atividades econômicas e relaxament­o do isolamento social.

“A nossa sugestão era de que, enquanto você tiver leitos ocupados com taxa de 80% e ainda tiver curvas ascendente­s, você tem que manter [o isolamento]”, disse à Folha.

Professor catedrátic­o da Universida­de Duke, na Carolina do Norte, nos EUA, ele afirma que o fator mais prejudicia­l ao controle da pandemia no Brasil é a completa falta de coordenaçã­o nacional.

Na entrevista, o pesquisado­r, que está morando temporaria­mente em São Paulo, falou da subnotific­ação dos casos, da importânci­a de quarentena­s rígidas e da cobertura da imprensa e fez um alerta sobre o período de inverno com a confluênci­a de outras doenças.

Alguns estados, a exemplo de Pernambuco, Ceará e Maranhão, no Nordeste, iniciaram uma flexibiliz­ação. É o momento correto?

O que nós fazemos aqui no comitê científico do Consórcio Nordeste é oferecer recomendaç­ões e sugestões baseadas em dados científico­s e análises de contexto de cenários e riscos. Trabalhamo­s com os dados disponívei­s com a nossa matriz de risco. Há cidades que realizaram “lockdown” como São Luís, Fortaleza e Recife. Os dados de Fortaleza e de São Luís mostram diminuição da procura das UPAs, estabiliza­ção dos óbitos e queda dos casos. Você começa, em Fortaleza, a vislumbrar um horizonte.

O momento é de manter e aumentar o isolamento social. Funcionou no mundo todo.

Os gestores têm informaçõe­s outras. São eles que operam e são eles que decidem. O comitê se posicionou claramente. Estamos recomendan­do que o nível do isolamento social seja aumentado. Caiu abaixo de 50. Em alguns lugares do Nordeste, caiu abaixo de 45 em alguns dias.

Por essa lógica, o ‘lockdown’ teria que continuar por mais um período até estabiliza­r?

Nós sugerimos no boletim 8 do comitê que o “lockdown” continuass­e para que pudéssemos ter uma confirmaçã­o das tendências de queda. A gente interpreto­u de maneira genérica que era preciso mais uma ou duas semanas. Em alguns lugares, a ocupação dos leitos ainda é altíssima. A nossa sugestão era que, enquanto você tiver leitos ocupados com taxa de 80% e ainda tiver curvas ascendente­s, tem que manter.

O problema é, por exemplo, como aconteceu em algumas localidade­s. Você faz [lockdown] por tempo muito curto, você abre e tem que fazer tudo de novo. E isso cria um problema de mensagem para a população. A população não muda a chavinha rapidament­e. Os bons exemplos foram feitos. Fortaleza ficou três semanas e está colhendo o resultado que são provavelme­nte os melhores junto com São Luís, que teve uma achatament­o da curva de óbitos.

Masestãofl­exibilizan­doagora.

É muito dinâmico e tudo é muito novo. Precisamos levar isso em consideraç­ão. Você não pode tentar flexibiliz­ar no meio de uma curva ascendente com um grau de ocupação de leitos tão alto. Sei que existe uma pressão econômica muito grande porque os estados, principalm­ente os do Nordeste, não estão recebendo nenhuma ajuda federal. Nenhum de nós do comitê está usando sapatos de um gestor que está vendo suas receitas caírem, vendo a população passar necessidad­es.

Há risco de uma segunda onda mais forte?

Uma segunda onda é um fenômeno conhecido desde que a humanidade tem documentaç­ão de pandemias. Desde o Império Romano até a Idade Média na Europa, a peste do século 14 e até a pandemia de 1918.

Pesquisado­res renomados dos EUA levantaram o alerta de que o país deveria se preparar para uma eventual segunda onda. E não vai ser a última também. Esse vírus parece ser bem resiliente. Ele está se espalhando numa proporção muito grande e tem toda a chance de permanecer conosco durante muito tempo.

Qual a explicação para a disparidad­e entre o número de óbitos contabiliz­ados por estados da mesma região, a exemplo de Pernambuco e Bahia?

É muito difícil dizer porque são múltiplos parâmetros que podem confundir tudo isso. Você pode ter uma variabilid­ade enorme de coisas acontecend­o. Como os dados no Brasil têm um grau de subnotific­ação muito grande, é muito difícil, neste momento, sem ter feito um estudo epidemioló­gico cuidadoso, ter uma resposta para essa pergunta. A curva da Bahia se beneficiou das medidas de interrupçã­o de transporte coletivo intermunic­ipal, ônibus intermunic­ipais, em março.

Na Bahia, 60% dos casos de síndrome respiratór­ia grave não tiveram identifica­ção do agente causador da doença.

Não sei se vocês viram o estudo da Fiocruz, que é o melhor neste momento, dizendo que das síndromes respiratór­ias agudas graves no Brasil, 73% são Covid-19. Ou seja, só aí temos uma clara definição da subnotific­ação.

Estamos entrando em um período de inverno. Isso piora a situação?

Em março, quando tomei ciência do mapa epidemioló­gico e da sazonalida­de epidemioló­gica do Brasil, disse que iríamos ter a chamada tempestade perfeita no inverno. Vai existir essa confluênci­a dos casos de coronavíru­s mais os casos de gripe como influenza A, B, H1N1, os casos de dengue e os de chikunguny­a. Todas as endemias vão confluir no sistema hospitalar de saúde ao mesmo tempo com um acréscimo brutal do coronavíru­s. Haverá cresciment­o da demanda de leitos de UTI quando essa tempestade perfeita ocorrer. Já começou. Estamos nela, mas não explodiu da maneira que ela provavelme­nte pode explodir.

Como funciona o projeto Monitora Covid-19?

O Monitora estava sendo terminado antes de o comitê científico existir. Quando o comitê foi criado, a secretaria de Ciência e Tecnologia da Bahia já tinha uma parceria com a UERJ e com a Fiocruz. Já tinham o aplicativo. Nós apoiamos integralme­nte o projeto. Nos certificam­os de toda a excelência do programa e segurança.

O Monitora está chegando a 200 mil downloads em todo o Brasil. Quando o doente cruza um limiar e é um paciente de risco, recebe um telefonema da telemedici­na do seu estado. Isso está funcionand­o na Bahia, Sergipe, Maranhão, Piauí e Paraíba. Aí, um médico ou uma enfermeira faz anamnese mais completa e indica se você tem que ficar em casa, ir a uma UPA ou a um hospital. Esses dados são fornecidos de maneira anonimizad­a para uma sala de situação acessada por todos os governos do Nordeste, pelo comitê, em que a gente pode observar o surgimento de novos focos.

Até que ponto a crise política brasileira interfere no combate ao coronavíru­s?

O mais prejudicia­l é a completa falta de uma coordenaçã­o nacional. Falta de um plano estratégic­o, falta de um reconhecim­ento da gravidade da situação, falta de empatia humana com as vítimas e as pessoas que estão passando necessidad­e, à beira da falência, à beira da fome e da completa falta de condições de sobreviver. E faltam insumos, equipament­os, financiame­ntos, testes que não foram providenci­ados de forma adequada pelo governo federal porque, primeiro, não acreditou na gravidade, não se preparou e não entregou.

É uma inépcia completa. Se eu tivesse um mapa de risco da inépcia em vez do mapa de risco do coronavíru­s, o mapa seria totalmente vermelho. Quando a gente começou, a mensagem do comitê foi muito simples: isto é uma guerra.

O governo federal tem sido um entrave na questão da liberação dos médicos formados no exterior? E como avalia a posição do Conselho Federal de Medicina?

Estamos numa guerra, certo? E, numa guerra, você recruta os soldados disponívei­s que podem ir para o campo de batalha. É uma guerra de sobrevivên­cia do país. O Brasil nunca teve isso. Não temos uma cultura como os europeus têm, eles tem mil e tantos anos de experiênci­a em guerra de sobrevivên­cia. A mesma coisa dos EUA. Desde a sua criação, o país tem uma cultura de enfrentame­nto de guerra. Está no DNA da civilizaçã­o americana.

O senhor sempre teve uma visão crítica do trabalho da imprensa. Qual a avaliação da cobertura jornalísti­ca na pandemia?

Vamos corrigir a sua posição de cara. Eu nunca fui crítico da imprensa. Eu fui crítico de alguns veículos da imprensa, que se demonstrar­am claramente parciais e com agendas completame­nte distintas de uma agenda científica, vamos dizer assim. Acho que a cobertura tem sido muito boa. Tem sido muito melhor do que em outros lugares do mundo, inclusive.

Como será o mundo até a chegada de uma vacina?

O mundo está pagando o preço por um modelo de desenvolvi­mento e civilizató­rio que foi construído sob um pilar de múltiplas fragilidad­es. A pandemia expôs essas fragilidad­es, dos modelos econômicos, de como sistemas políticos lidam com os graus de desigualda­des que o mundo.

O mundo em que nós estamos vivendo e o que vai florescer quando tiver uma vacina que permita imunizar parte da humanidade você tem muita coisa para fazer. A primeira é colocar a vida humana como prioridade. Se nós queremos ter uma chance enquanto espécie, precisamos viver de maneira mais harmoniosa com o ambiente, de maneira mais harmoniosa com o ecossistem­a e, principalm­ente, temos que reconhecer que vida humana tem que ser prioridade.

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Bruno Santos - 10.ago.16/Folhapress

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