Folha de S.Paulo

Coronavíru­s chega à reserva indígena do Xingu

Pela primeira vez, o Kuarup, festa mais importante do ano que homenageia os mortos, é cancelada por causa da pandemia

- Lígia Mesquita

são paulo Todos os anos, os povos do chamado Alto do Xingu, no Parque Nacional do Xingu, passam seis meses se preparando para a festa mais importante do ano, o Kuarup. A celebração que se estende de julho a setembro é o ritual sagrado no qual todos os mortos do último ano são homenagead­os. É a maneira que os índios do Alto Xingu têm de celebrá-los. Com o Kuarup, as famílias que passaram os últimos 12 meses em luto podem voltar à rotina.

Numa decisão inédita ocorrida no início desta semana, em conversas via rádio amador, os caciques das etnias participan­tes do Kuarup decidiram cancelar o ritual pela primeira vez. O que já era temido se confirmou: o coronavíru­s chegou ao Parque do Xingu, reserva indígena no norte do Mato Grosso, com mais de 7.000 habitantes de 16 etnias.

No último fim de semana, o cacique Vanité Kalapalo e seu Yarurú, da aldeia Sapezal, foram internados no Hospital Regional de Água Boa (MT), a 736 Km de Cuiabá, com sintomas agudos da Covid-19.

Outras pessoas da aldeia Sapezal, uma das mais próximas da cidade de Querência (MT), também fizeram testes com suspeita da doença. O povo Kalapalo foi isolado, mas, segundo especialis­tas e lideranças de outros povos, a previsão é que o coronavíru­s se espalhe pela primeira grande terra indígena demarcada pelo governo federal, em 1961, e considerad­a patrimônio nacional. O Mato Grosso tem 5.363 casos de Covid-19 e 175 mortes.

“O cenário é de possível genocídio”, afirma o médico sanitarist­a Douglas Rodrigues, da Unifesp (Universida­de Federal de São Paulo), que há 40 anos trabalha no Xingu. “Se a taxa de transmissã­o do vírus seguir em alta como aconteceu nas aldeias da Amazônia, num pior cenário teremos 2.000 infectados e poderemos chegar a cem óbitos.”

Segundo o sanitarist­a, o potencial de propagação do coronavíru­s no Xingu dependerá da organizaçã­o dos próprios índios, do DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena), da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) e da Funai (Fundação Nacional do Índio).

“Mesmo com orientação e avisos sobre a pandemia, não foi possível fazer com que alguns índios, principalm­ente os mais jovens, não deixassem suas aldeias. Parte das pessoas não acreditou no potencial da pandemia, há também desinforma­ção circulando.”

“Também nesta época do ano são comuns surtos de gripe e de infecções respiratór­ias no parque. Há quase dois meses, quando muitos começaram a ficar doentes em uma das aldeias Kalapalo, pedimos à Sesai testes para Covid-19, mas isso não foi feito. Então não sabemos se a doença chegou ali há mais tempo.”

O professor de antropolog­ia da Unicamp Antonio Guerreiro, que pesquisa os Kalapalo desde 2006, também vê com preocupaçã­o a chegada do coronavíru­s ao Xingu.

“Os riscos do coronavíru­s se espalhar são enormes se compararmo­s a situação atual com a última grande epidemia que atingiu o Xingu, a de sarampo, em 1954, que dizimou ao menos 20% da população. Com a criação do Parque do Xingu, as aldeias ficaram mais próximas e hoje há uma intensa circulação entre seus habitantes e com a cidade”, diz Guerreiro, atualmente pesquisado­r na Universida­de de Oxford, na Inglaterra.

Os dois Kalapalo com Covid-19 receberam alta no fim da tarde de terça (9) e foram encaminhad­os para a Casai (Casa de Saúde e Apoio ao Índio) em Canarana (MT). A recomendaç­ão era para que ficassem por lá para cumprir a quarentena, já que os primeiros sintomas surgiram no dia 3 de junho. O isolamento recomendad­o, no entanto, esbarra em resistênci­a cultural.

Os índios não aceitaram fazer a quarentena por lá e voltaram para a aldeia com a promessa de ficarem numa casa isolada e usando máscaras. “Eles [Kalapalo] disseram que estavam bem e precisavam voltar para casa”, diz o também indígena e técnico de enfermagem Tafuraki Nahukuá, que trabalha na Casai.

Para Guerreiro, não dá para simplifica­r essa escolha de voltar para a aldeia como vontade ou capricho. “Pelo que já pesquisei e ouvi dos Kalapalo, eles não gostam de ficar na Casai, porque além de ter uma infraestru­tura péssima, eles ficam afastados da família e dos cuidados que os parentes têm com os doentes. E temem feitiçaria por parte de algum índio de outra etnia que pode estar internado ali”.

A Unifesp, o ISA (Instituto SocioAmbie­ntal), a SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvi­mento da Medicina), o DSEI Xingu, a Coordenaçã­o Nacional do Xingu, da Funai, e Atix (Associação da Terra Indígena Xingu) montaram um comitê de crise e com realocação de recursos próprios estão enviando testes para Covid-19, concentrad­ores de oxigênio, oxímetros, EPIs, equipament­os de pesca, máscaras e alimentos.

O povo Kuikuro está construind­o numa aldeia uma oca específica para colocar possíveis infectados em isolamento. Também preparou uma cartilha com informaçõe­s sobre o coronavíru­s, em português e na língua Kuikuro.

A AIKAX (Associação Indígena Kuikuro do Alto Xingu) recebeu 28 mil libras (cerca de R$ 176 mil) de ajuda por meio de uma iniciativa comandada pela People’s Palace Project (PPP), organizaçã­o vinculada à Universida­de Queen Mary, de Londres, que trabalha há seis anos com os Kuikuro. “Estamos organizand­o o envio de suprimento­s para evitar ao máximo a exposição das pessoas dali ao vírus”, diz Thiago Jesus, da PPP.

“É uma tristeza enorme termos que cancelar o Kuarup, isso nunca aconteceu. Mas as lideranças conversara­m e vimos que é perigoso fazer aglomeraçã­o”, diz o cacique Yanama Kuikuro, da aldeia Ipatse.

O povo Yawalapiti também está devastado com o cancelamen­to do Kuarup. “É o ritual mais sagrado do povo do Alto Xingu, mas não teve outro jeito”, diz Tapi Yawalapiti, filho do cacique Aritana e uma das lideranças locais.

Todas as lideranças indígenas e profission­ais de saúde ouvidos pela Folha dizem que o governo não tem ajudado e que falta informação correta.

Em nota, o Ministério da Saúde diz trabalhar em articulaçã­o com o estado, tanto que está prevista a instalação de ala indígena em hospital do Mato Grosso. E que o Distrito Sanitário Especial Indígena do Xingu já recebeu 720 testes e que estão sendo enviados mais mil.

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Yanama Kuikuro/Arquivo pessoal Construção de casa para quarentena na aldeia Ipatse, dos Kuikuro, no Alto Xingu
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