Folha de S.Paulo

Dulce, 90, estava sempre onde a história acontecia

- Ruy Castro

rio de janeiro Em 24 de agosto de 1954, uma terça-feira, Getulio Vargas se matou. “O Cruzeiro”, a maior revista do país, saía normalment­e na sexta. A edição daquela semana ainda estava em preparo e claro que o suicídio do presidente —o maior fato da nossa história política desde a Proclamaçã­o da República— tinha de ir para a capa.

Mas, por razões industriai­s, a capa, em cores, era sempre rodada com antecedênc­ia. E aquela já estava impressa -trazendo a bela Dulce Bressane, “estrela do cinema nacional”.

“O Cruzeiro” não hesitou. Acrescento­u um caderno de 24 páginas em preto-e-branco à edição, com tudo sobre a morte de Getulio, e manteve a capa já pronta. E, com isso, Dulce Bressane, 25 anos, estrelou também a edição de maior tiragem de uma revista brasileira até então —mais de 600 mil exemplares. O curioso é que, dentro, não havia uma reportagem sobre ela.

Nem precisava. Dulce só aparecera em um filme, “Estrela da Manhã”, em 1949, em que Dorival Caymmi cantava para ela seu samba-canção “Nunca Mais”. E não fizera outros porque não quis.

Era namorada de um famoso pianista do society carioca, Bené Nunes, com quem se casaria e formariam um dos casais mais disputados da cidade. O mundo parecia vir-lhe ao colo.

Pouco antes da capa de “O Cruzeiro”, Dulce disse a Bené que gostaria de aprender violão. Pois Bené não deixou por menos: contratou o sensaciona­l violonista Garoto para lhe dar aulas.

Em fins dos anos 50, Dulce —já então Dulce Nunes— e Bené fizeram mais pela música. Abriram os salões de seu apartament­o na Gávea para as reuniões de um bando de jovens chamados Tom Jobim, João Gilberto, Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal, praticante­s de algo ainda estranho para os ouvidos de muitos —uma “bossa nova”. Foi ali, tanto quanto no apartament­o de Nara Leão, em Copacabana, que essa música se consolidou.

Em 1963, a gravadora Columbia propôs-se a gravar as canções do musical “Pobre Menina Rica”, de Lyra e Vinicius de Moraes, para lançar sua nova contratada, a garota Elis Regina. Mas, talvez sem ouvi-la, Jobim, autor dos arranjos, e Lyra discordara­m dessa escolha. Com seu vestidinho de chita, Elis não lhes pareceu a personagem.

Ela foi dispensada e, para o lugar, quem chamaram? Sua amiga Dulce Nunes —que, com seu registro alto, fazia perfeitame­nte o papel e teve a honra de ser a primeira a gravar “Primavera”.

E quem mais, além de Dulce, teria como parceiros Guimarães Rosa, Drummond, Mario Quintana, Jorge Amado, Paulo Mendes Campos, Antonio Callado e Millôr Fernandes?

Eles lhe cederam textos e poemas que, por insistênci­a do produtor Roberto Quartin, Dulce musicou e gravou no disco “Samba do Escritor”, de 1968.

Há tempos ela se espantou ao saber que ele estava valendo quatro dígitos no mercado de LPs. Para Dulce, era apenas uma obra entre amigos.

Dulce, de há muito novamente Bressane, se foi no dia 4 de junho último, aos 90 anos, no Rio de Janeiro.

 ?? Paulo Lorgus /Acervo UH ?? A cantora Dulce Nunes, em estúdio de gravação, em novembro de 1965
Paulo Lorgus /Acervo UH A cantora Dulce Nunes, em estúdio de gravação, em novembro de 1965

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