Um ano após STF criminalizar homofobia, relatos de LGBTfobia crescem na quarentena
“É preciso primeiro educar os brasileiros em direitos humanos, atacar o ato de discriminação antes de ele se concretizar, e isso precisa ser feito na escola
são paulo Maria, 21, foi expulsa de casa pelo padrasto, de 43 anos, com socos no rosto e xingamentos. Era madrugada do dia 20 de maio, em São Paulo, em plena pandemia de Covid-19. A vítima, que teve o nome alterado para preservar a sua privacidade, já não aguentava mais as humilhações que sofria pelo fato de ser uma mulher trans.
Maria disse à polícia que as brigas aumentaram porque está desempregada e passou a ficar mais tempo em casa por causa da quarentena imposta pela pandemia. Enquanto era espancada, ouviu a ameaça: “Se você me denunciar em algum lugar, vai se dar mal”.
Maria foi socorrida por uma ativista da Casa Chama, entidade que ampara pessoas trans em situação de vulnerabilidade na capital, e levada para prestar queixa na 8ª Delegacia de Defesa da Mulher, em Aricanduva (zona leste).
Na delegacia, Maria diz ter sido mais uma vez humilhada. “Os agentes da polícia a trataram no masculino. O tempo todo a chamavam de ‘ele’”, diz seu advogado, Fernando Zanella de Andrade.
No boletim de ocorrência, o escrivão que ouviu Maria informou que ela se identificou como mulher trans e disse o nome social que usava, apesar de ainda não constar em seus documentos. Ela viu seu nome de registro civil se repetir nos despachos e em trâmites burocráticos sobre seu caso no Tribunal de Justiça.
Maria fez exame de corpo de delito e obteve na Justiça a partir de parecer favorável do Ministério Público, no mesmo dia das agressões, uma medida protetiva prevista na lei Maria da Penha que mandou o padrasto ficar longe dela.
Ela é filha única e não voltou para a casa da mãe desde então. Está abrigada num local onde recebe amparo.
Sobre o caso da paulistana, a polícia registrou no boletim de ocorrência os crimes de lesão corporal, ameaça e violência doméstica. Mas não citou que a vítima foi agredida por ser uma pessoa trans.
A saga de Maria em busca de seus direitos bate de frente com a ausência de leis específicas que criminalizam atos de violência praticados contra pessoas LGBTIs no Brasil.
Para preencher o vácuo legal, o STF (Supremo Tribunal Federal) reconheceu há um ano a homofobia e a transfobia no rol dos crimes de racismo até que o Congresso Nacional aprove uma lei.
Em 13 de junho de 2019, Dias Toffoli, presidente do STF, chamou o Congresso de omisso por nunca ter votado uma lei sobre o caso, apesar da existência de projetos em tramitação há quase 20 anos.
Segundo Paulo Iotti, a decisão do STF foi importante porque “deu instrumentos jurídico-penais indispensáveis para a população LGBTI poder lutar contra opressões não criminalizadas pelo Código Penal, como os discursos de ódio, previstos só na lei antirracismo”, diz ele, que preside o Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero.
Para ativistas ouvidos pela Folha, a população LGBTI vai ter que esperar um pouco mais por uma lei específica devido às articulações de Jair Bolsonaro no Legislativo.
O presidente é conhecido pelas várias declarações consideradas homofóbicas dadas ao longo de sua vida pública.
Os ativistas também avaliam a medida tomada pelo STF como um importante passo, mas questionam se só criminalizar os atos de violência contra as pessoas LGBTIs é a melhor resposta.
Indianarae Siqueira, 49, gestora da Casa Nem, abrigo para pessoas trans em Copacabana, no Rio, diz que é preciso primeiro “educar os brasileiros em direitos humanos”.
Siqueira, que já foi perseguida por causa de seu ativismo, avalia que a maioria das
Indianarae Siqueira gestora da Casa Nem, abrigo para pessoas trans no Rio
pessoas penalizadas por racismo contra LGBTIs continuarão sendo as mais pobres. “É preciso atacar o ato de discriminação antes de ele se concretizar e isso precisa ser feito na escola”, afirma.
Iran Giusti, gestor da Casa 1, abrigo para LGBTIs no centro de São Paulo, tem a mesma opinião. Ele acrescenta que a atuação do judiciário no vácuo do legislativo “desmobilizou o debate”.
“Não houve um debate nacional sobre o tema. E isso criou um precedente perigoso: o legislativo vai ficando cada vez mais acomodado em relação às pautas das minorias.”
Enquanto isso, a Rebraca (Rede Brasileira de Casas de Acolhimento para pessoas LGBTIs) vem se desdobrando para atender LGBTIs expulsos de casa, que sofreram agressões e perderam empregos.
João Hugo Cerqueira, porta-voz da entidade, diz que o esforço tem sido o de dar suporte psicológico aos pais para eles entenderem que “não é justo expulsar um filho LGBTI de casa só porque ele não correspondeu às expectativas, além de ser um crime”.
A Casa Chama, também vinculada à Rebraca e que atendeu Maria, têm fornecido cestas básicas, apoio jurídico e psicossocial, além de serviços de saúde a 200 pessoas trans na capital paulista.
A secretaria da Segurança Pública da gestão Doria (PSDB) informou que a investigação do caso de Maria está em andamento e a natureza do crime pode ser alterada no decorrer da apuração dos fatos. A vítima, segundo a secretaria, foi tratada da maneira que se apresentou, pelo nome social, durante o registro da ocorrência.
A pasta afirmou que os registros de violência relacionados à população LGBTI cresceram 12,69% em 2019 na comparação com 2018 e, que neste ano, já instaurou 44 inquéritos para apurar crimes de homofobia.