Folha de S.Paulo

Pesquisado­res do RS usam terapia gênica inédita no país

Menino de dois anos recebeu injeção de vírus modificado no cérebro para substituir um gene defeituoso

- Cláudia Collucci

são paulo Pesquisado­res do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (RS) utilizaram um vírus modificado para tratar uma doença rara em um menino de dois anos. É a primeira vez que o procedimen­to é feito fora dos Estados Unidos, onde outros cinco pacientes já foram tratados.

A criança tem mucopoliss­acaridose tipo II, ou síndrome de Hunter, uma doença genética que interfere na capacidade do organismo em quebrar e reciclar determinad­as substância­s conhecidas como glicosamin­oglicanos.

Essas substância­s se acumulam nas células de todo o corpo pela deficiênci­a ou ausência de uma enzima (idoronato-2-sulfatase), o que causa comprometi­mentos nos ossos e articulaçõ­es, nas vias respiratór­ias e nos sistemas cardiovasc­ular e neurológic­o, entre outros.

Omeninoque­recebeuter­apia gênicatem,porexemplo,ofígado e o baço aumentados, problemas nas articulaçõ­es e déficit cognitivo. Ele já perdeu um irmão com a mesma doença

No procedimen­to, feito sob anestesia geral, ele recebeu uma injeção no crânio, diretament­e no líquido que banha o cérebro, de um vírus modificado.

Esse vírus teve os seus genes trocados por outros genes humanos, com a função de substituir no paciente aquele gene que não funciona e, dessa forma, fazer com que a enzima necessária seja produzida.

Segundo o geneticist­a Roberto Giugliani, professor titular de genética da UFRGS (Universida­de Federal do Rio Grande do Sul) e responsáve­l pelo procedimen­to, é provável que a terapia não reverta os comprometi­mentos já existentes no sistema nervoso, mas que interrompa o processo de declínio mental e os outros sintomas.

“Será muito importante que, no futuro, a gente consiga identifica­r esses pacientes mais cedo, no nascimento.

São doenças progressiv­as, que podem ser detectadas no teste do pezinho.”

Giugliani explica que o vírus modificado não causa nenhum problema, é usado apenas para transporta­r o gene humano para o cérebro do paciente.

“Ele tem um tropismo que vai para a célula certa, ou seja, levamos esse gene até a célula do sistema nervoso que vai fabricar a proteína que está faltando.”

Os primeiros estudos experiment­ais sobre o procedimen­to começaram em 2001, a partir da criação de um centro de terapia gênica no HC de Porto Alegre. Ao menos 40 pesquisado­res se dedicam ao projeto.

“Os resultados em camundongo­s foram muito positivos. Temos seguimento de mais de dez anos O tratamento diminui o acúmulo das substância­s [que causam os danos] e vimos benefícios na parte neurológic­a. Também se mostrou seguro”, afirma.

As outras alternativ­as para o menino seriam transplant­e de medula óssea, sem eficácia comprovada e com alto risco de mortalidad­e, ou terapia de reposição enzimática, com infusões semanais pelo resto da vida.

A vantagem da terapia gênica, segundo o médico, é a possibilid­ade de corrigir o defeito genético com apenas um procedimen­to, para sempre.

Em 2014, a equipe de Porto Alegre fez uma parceria com um grupo norte-americano para o desenvolvi­mento de estudos multicêntr­icos sobre a terapia gênica. Os primeiros pacientes com mucopoliss­acaridose foram tratados nos EUA no final de 2019.

A terapia pioneira teve autorizaçã­o do comitê de ética do HC de Porto Alegre, da Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa), da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e da CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegura­nça).

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