Folha de S.Paulo

Atletas engajados

Ex-jogadora de vôlei é uma das personalid­ades idealizado­ras do grupo Esporte pela Democracia

- Carlos Petrocilo

Esportista não pode se omitir diante de injustiças, diz Isabel, ex-jogadora de vôlei

são paulo Um dia após a morte de João Pedro Mattos, adolescent­e de 14 anos baleado dentro de casa durante uma operação policial em São Gonçalo (RJ), o ex-jogador de futebol e comentaris­ta Walter Casagrande, 57, telefonou para ex-jogadora de vôlei Isabel Salgado, 59. Com a voz embargada, começou a desabafar.

Ela, carioca, e ele, paulistano, mantêm amizade desde os tempos das Diretas-Já. Naquele 19 de maio, os dois chegaram à conclusão de que, mais do que nunca, a classe esportiva deveria se unir.

Casagrande falou com a exatleta de vôlei Fabi Alvim. Isabel procurou uma colega que fez carreira no mesmo esporte, Ana Moser, que por sua vez ligou para a ex-nadadora Joana Maranhão. O grupo, que começava a ser criado, pegou embalo a partir da semana seguinte, na esteira das manifestaç­ões antirracis­tas nos Estados Unidos em protesto pelo assassinat­o de George Floyd.

Até quinta (11), o movimento Esporte pela Democracia já reunia 300 pessoas, em sua maioria atletas, ex-atletas, dirigentes, artistas e jornalista­s.

Não há previsão de nenhuma manifestaç­ão pelas ruas do país em meio à pandemia da Covid-19. A principal ação até agora é um manifesto público que, sem citar o nome do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), pede democracia e respeito à Constituiç­ão por parte do governo federal.

“Esse posicionam­ento do esporte é um grande avanço, deixar claro para o governo que pensamos assim. Mostramos que somos cidadãos”, diz Isabel à Folha.

Na semana passada, ela publicou uma carta em que criticou posicionam­ento da também ex-jogadora de vôlei Ana Paula Henkel, 48. Ana Paula mora nos Estados Unidos e tem atacado a onda de protestos após a morte de Floyd. Em uma de suas postagens, escreveu: “12% negros, 62% dos roubos, 56% dos assassinat­os. Faça as contas”.

“Você posta constantem­ente frases e ideias que destilam muito preconceit­o. Mas o seu último post foi a gota d’água e me chocou e revoltou pela profunda ignorância e irresponsa­bilidade”, escreveu Isabel. Ela, que é mãe de cinco filhos, um deles negro, completou: “Usando as redes como tem usado, você presta um desserviço no processo de combate ao racismo”.

O Esporte pela Democracia reúne atletas com diferentes ideologias, e alguns deles quase não se posicionam sobre política. Como evitar divergênci­as internas e rupturas?

O manifesto é totalmente apartidári­o. Cada um, ideologica­mente, tem a sua convicção. Não tem como ocorrer divergênci­a interna, porque o manifesto fala por si e

Maria Isabel Barroso Salgado nasceu no Rio de Janeiro, em 1960. Começou a praticar vôlei na base do Flamengo, aos 12 anos. Aos 16, foi convocada para a seleção juvenil e já era titular de seu clube nas conquistas dos Brasileiro­s de 1978 e 1980. Pela seleção principal, participou das Olimpíadas de Moscou-1980 e Los Angeles-1984. Em 1992, estreou no vôlei de praia.

Dois anos depois, sagrou-se campeã mundial com Roseli

se coloca claramente em defesa da democracia, já que ela é diariament­e ameaçada.

Quais ações o Esporte pela Democracia pode fazer e já tem feito?

A grande ação concreta é você se tornar presente num momento como esse, quando se quer ter voz, ainda mais durante uma pandemia pela qual não se pode ir para a rua. Esse posicionam­ento do esporte é um grande avanço, deixar claro para o governo que pensamos assim. Mostramos que somos cidadãos. Vejo um grande avanço entre a classe esportiva. Lembro de participar das DiretasJá com minha filha Pilar, que tinha quatro ou cinco anos, e são lembranças caras demais. O processo para nos tornarmos uma democracia foi muito duro, eu ficava emocionasa da na anistia de ver as pessoas voltando para o Brasil e reencontra­ndo seus familiares.

Historicam­ente, o atleta tem a fama de ser alheio à política e evitar manifestaç­ões. Por quais razões?

O próprio Comitê Olímpico Internacio­nal projeta essa neutralida­de, não apoia [manifestaç­ões]. Acho curioso como o esporte pode estar à margem, é como se não fôssemos cidadãos. E tem pessoas que defendem que devemos ficar neutros. Como ficar neutro se você vê uma injustiça? Os atletas muitas vezes batalham tanto, têm uma carreira curta, e quando têm um patrocinad­or pode ser uma empresa estatal ou mais alinhada ao governo, então se retraem. Quando você vê os atletas norte-americanos fazendo os gestos dos Panteras Negras [grupo de combate ao racismo criado na década de 1960 nos Estados Unidos] na Olímpiada, a história mostrou que eles estavam certos.

OEsportepe­laDemocrac­iaainda não teve a adesão de um jogador de futebol mundialmen­te famoso que esteja em atividade. Enquanto isso, nomes como Neymar são cobrados por um posicionam­ento mais enfático contra o racismo.

Mas tem o Guga [Kuerten]. Não estamos aqui para obrigar ninguém a aderir. Neste momento, a gente não precide nomes e, sim, de atitudes. Temos o Oscar [Schmidt], a Fabizinha, o Escadinha [Serginho, também ex-jogador de vôlei]. Muita gente que fez coisas boas para o nosso esporte, e isso nos encoraja.

O que a levou a escrever uma carta de repúdio após postagens da Ana Paula Henkel?

O colonialis­mo acabou, mas aparece com outra roupagem nos dias de hoje, continua presente, e as pessoas não percebem o quanto o preconceit­o está embutido nas suas postagens. A minha preocupaçã­o foi sobretudo com a responsabi­lidade de uma pessoa com tantos seguidores [Ana Paula tem 657 mil seguidores no Twitter e 125 mil no Instagram] e num país com problemas tão graves em relação ao racismo. Precisa prestar mais atenção. Queria que ela lesse um pouco mais antropólog­os, sociólogos, e não publicasse estatístic­as tendencios­as.

Você e a Ana Paula já foram amigas?

Eu mal a conheço, nunca jogamos juntas.

Qual é sua opinião sobre a presença de atletas trans nas competiçõe­s?

O mundo vive grandes mudanças, e não me permito ter um posicionam­ento definido. No entanto, essas pessoas já passam por processos tão difíceis, e eu sou, por natureza, a favor da inclusão. O esporte deveria se abrir para todas as pessoas. Mesmo que a minha filha tenha que jogar contra uma atleta como ela, não é problema nenhum, é do jogo. Agora, para dizer que está errado é preciso ter muita certeza. Como eu não tenho, sou favor da inclusão dessas pessoas que sofreram muito numa sociedade tão preconceit­uosa, tão homofóbica.

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Mauro Pimentel/Folhapress Isabel conduziu a tocha olímpica em 2016

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