Folha de S.Paulo

Documentár­io desconstró­i pirâmide sexual do bilionário Jeffrey Epstein

Carismátic­o e manipulado­r, ele ficou impune por anos intimidand­o vítimas e autoridade­s por meio de uma rede de amigos influentes

- Alexa Salomão

são paulo Os quatro episódios do documentár­io “Jeffrey Epstein: Poder e Perversão”, da Netflix, começam sempre com a mesma mensagem: “Esta série contém descrições explícitas de abuso sexual de menores que podem incomodar alguns telespecta­dores”. E o que vem a seguir não apenas incomoda, estarrece.

A narrativa da série tem um mérito peculiar: apresentar gradualmen­te o tema da perversão sexual, enquanto desconstró­i o mito do bilionário.

No começo, Epstein parece mais um endinheira­do, com amigos importante­s, fazendo uma bobagem pontual. Bemsucedid­o, tem apartament­os nos endereços da elite de Nova York e de Paris, fazenda no Novo México, casa no pedaço restrito de Palm Beach e até uma ilha inteira no Caribe.

Uma jornalista descobre que ele abusou de menores de idade anos antes e inclui entrevista­s com as vítimas num perfil que seria publicado na festejada revista Vanity Fair. Os bastidores não vêm a público, e fica claro que Epstein agiu para que o trecho sobre sexo com menores fosse excluído da reportagem.

Daí para a frente, só piora. Os casos de assédios e estupros vão sendo progressiv­amente apresentad­os até ficar claro que Epstein sempre fora um predador pedófilo. Havia abusado de dezenas, aparenteme­nte centenas, de menores de idade.

Pelo descrito no documentár­io, por mais de 20 anos, ele construiu um esquema de pirâmide sexual ludibriand­o e intimidand­o emocionalm­ente crianças e jovens.

Ter muito dinheiro, o que lhe permitia pagar pelos advogados mais astutos, não explica totalmente por que ficou tanto tempo incólume. É possível dizer que também se safou amparado na cultura do machismo, que transforma­va suas vítimas em prostituta­s.

Um trunfo foi a poderosa rede de influência empresaria­l e política que ele teceu em torno da figura do bilionário vencedor. O mito ora deslumbrav­a, ora intimidava. Em momentos derradeiro­s, ajudou a burlar a Justiça a seu favor.

Epstein sabia que estava num clube fechado. Fazer fortuna até a casa dos bilhões é para poucos. A revista Forbes, que faz o mais conceituad­o rankings global de riqueza pessoal, identifico­u 2.095 bilionário­s neste ano.

Relatos em livros e filmes mostram que, para chegar ao pico da pirâmide social, muitos nem tinham o privilégio da herança. Foi preciso ser sagaz, visionário, empreended­or e, não raro, pragmático e duro em suas decisões e cobranças. Steve Jobs é o exemplo mais emblemátic­o dessa dicotomia vencedora.

Bilionário­s que cruzaram a linha entre certo e errado —e foram presos— têm em comum uma mistura de ganância, excesso de autoconfia­nça e convicção na impunidade.

Nunca se soube de onde veio a fortuna de Epstein —e seus pares ricos não se preocupara­m em checar. O documentár­io, porém, detalha a maestria com que ele usou o poder imaginário dessa figura, sem dispor dos atributos dos melhores bilionário­s e extrapolan­do as deficiênci­as dos que tiveram problemas com a lei.

Epstein foi recebido como um igual pela elite financeira de Wall Street, mas forjou diploma e usou charme para ingressar e galgar postos no mercado financeiro.

Ele aplicou golpes e até teria participad­o de um esquema de pirâmide. Nem de longe tinha o conhecimen­to de outro bilionário afeito a pirâmides, Bernie Madoff, autor da maior fraude financeira dos Estados Unidos. No entanto, enquanto Madoff pegou 150 anos de cadeia, Epstein nem foi acusado pelos comparsas, que temiam que ele conseguiss­e ludibriar as autoridade­s com seus encantos.

A capacidade para envolver os outros é um atributo no mundo dos negócios. O empresário Eike Batista é um exemplo brasileiro de até onde se vai com carisma elevado. O livro “Tudo ou Nada”, da jornalista Malu Gaspar, descreve bem como ele ergueu um império apenas com autoconfia­nça e projeções.

Seu grupo X, porém, desmoronou. Eike foi preso mais de uma vez na Operação Lava Jato. Nesta semana, foi condenado a oito anos de prisão por manipulaçã­o do mercado financeiro. O empresário pode recorrer em liberdade.

Epstein, descrevem seus colegas, tinha mais do que carisma. Era um manipulado­r nato. É isso que explica, por exemplo, nunca ter sido denunciado por roubar Leslie Wexner, fundador da L Brands, que controla marcas como Victoria’s Secrets.

Wexner admitiu publicamen­te, em 2019, ter ficado em silêncio por sentir vergonha.

Epstein foi mais genial ainda ao circular e se deixar fotografar ao lado dos expoentes do poder político e econômico. Na lista estiveram Donald Trump, hoje presidente do Estados Unidos, o ex-presidente americano Bill Clinton e príncipe Andrew, terceiro filho da rainha Elizabeth 2ª.

Essa exposição nem sempre dá certo. Joesley Batista, outro bilionário brasileiro, usou essa estratégia. Chegava a pedir a amigos para ser apresentad­o a empresário­s conceituad­os e integrante­s do governo.

Joesley buscava caminhos para fortalecer seu grupo. Algumas dessas relações levaram ao pagamento de propinas, investigaç­ões policiais e uma das mais controvers­as delações feitas por empresário­s no Brasil.

Epstein usou as amizades com outro fim: criar um escudo protetor para intimidar tantos as suas vítimas quanto os investigad­ores, que insistiam em levantar provas de seus crimes sexuais.

Funcionou por anos. Talvez ele estivesse solto até hoje. Mas foi vencido por um fator que nem o mais rico e poderoso dos homens consegue controlar: a evolução cultural.

O movimento #MeToo criou uma onda de denúncias contra assediador­es e estuprador­es nos Estados Unidos. Reunidas as provas, as autoridade­s foram obrigadas a julgá-lo e condená-lo. Como bem alerta o documentár­io, a descrição dos abusos a menores finalmente incomodou.

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