Folha de S.Paulo

Weintraub fez chacota da China. Um neto de chinês recorreu ao STF

Afro-sino-brasileiro Vinicius Wu não gostou de postagem e acusou ministro da Educação de racismo

- Catia Seabra

O ano é 1925. Com a China abalada por conflitos internos, o camponês Akit Wu, de 20 anos, deixa o vilarejo de Taishan, na província Guangdong, rumo ao Brasil.

Após três meses de travessia marítima, ele e o irmão, Aphou, aportaram no Rio de Janeiro. Instalado em Cordovil, bairro da zona norte, Akit trabalhou como feirante, cursou belas artes e passou a ganhar a vida como retratista em uma oficina de fotografia.

Akit se casou com uma paraense. O casal teve um filho único que, por sua vez, se casou com uma afrodescen­dente. Dessa união, nasceu o historiado­r Vinicius Gomes Wu, hoje com 40 anos.

Afro-sino-brasileiro, Vinicius Wu é o autor da notíciacri­me que motivou a abertura de inquérito no STF (Supremo Tribunal Federal) para apurar se o ministro da Educação, Abraham Weintraub, cometeu racismo ao publicar comentário­s jocosos contra chineses nas redes sociais.

A trajetória do avô, morto em 1991, inspirou a ação. Vinicius conta que lembrou, com tristeza, do velho Wu ao ler a postagem do ministro.

Nela, Weintraub usou um distúrbio da fala do personagem Cebolinha, dos quadrinhos da Turma da Mônica, para ridiculari­zar a dificuldad­e que os chineses enfrentam para pronunciar a letra “r”.

“Geopolític­amente, quem podeLá saiL foLtalecid­o, em teLmos Lelativos, dessa cLise mundial? PodeLia seL o Cebolinha? Quem são os aliados no BLasil do plano infalível do Cebolinha paLa dominaL o mundo? SeLia o Cascão ou há mais amiguinhos?”, escreveu o ministro, trocando a letra “r” por “l”, assim como na criação de Mauricio de Sousa —embora esta não o faça ao final de palavras como “sair”.

Posteriorm­ente, Weintraub apagou a publicação, que também sugeria que a China poderia ter ganhos com a pandemia da Covid-19.

Lembrando que a China é o maior parceiro comercial do país, Vinicius diz que ficou chocado com a atitude do ministro, ofensiva a uma comunidade de 290 mil pessoas.

O historiado­r afirma que a publicação de Weintraub causou-lhe um sentimento de retrocesso no Brasil. “Bateu uma certa tristeza.”

“Meu avô gostava muito do Brasil, sentia-se acolhido. Evidente que também vivia processos de discrimina­ção pontuais. Principalm­ente essa coisa do idioma”, conta. “É tão difícil para o chinês absorver o português, e ele absorveu.”

Contrariad­o, Vinicius consultou advogados sobre que medidas poderia adotar. Foi informado que, para entrar com uma ação por crime de racismo, é necessário que haja uma parte ofendida.

Dois dias depois da publicação, o historiado­r entrou, então, com a notícia-crime.

“A manifestaç­ão, além de indigna e repugnante, é totalmente incondizen­te com o padrão de conduta exigido de um ministro, prejudica o Brasil em suas relações internacio­nais e discrimina gravemente o povo chinês e os descendent­es de chineses que têm em nosso país sua pátria e sua casa”, afirma, na peça.

Em depoimento por escrito entregue à Polícia Federal, o ministro negou que tenha tratado os chineses com discrimina­ção e se disse ofendido por estar sendo investigad­o por racismo. Justificou que o “método abordado” na publicação nas redes sociais “incluiu elementos de humor”.

Vinicius se disse surpreso por ter sido o único a recorrer à Justiça, dentre os mais de 290 mil descendent­es de chineses ou chineses que habitam o Brasil. Para ele, essa é uma demonstraç­ão de desconfian­ça no Poder Judiciário.

“São gestos como esses que podem restaurar a confiança da sociedade nas instituiçõ­es, porque é evidente que não fui único descendent­e ou único chinês habitante no Brasil que se sentiu ofendido.”

O álbum de família de Vinicius retrata a miscigenaç­ão nacional. Bisneto de portuguese­s e indígenas, neto de chinês e filho de afrodescen­dente, ele recorda que, com traços negros, chamava a atenção ao passear com o avô e o pai. Perguntava­m se era adotado.

Em 2013, em viagem à China, pediam para tirar fotos ao seu lado. “Explicava para eles que, no Brasil, apesar de todo o racismo, é comum ver casamentos interracia­is”, relata.

Em casa, Vinicius conserva as máquinas fotográfic­as e as telas do avô. “Uma das coisas que herdei dele, e talvez seja o principal motivo da ação, é o respeito aos antepassad­os, a preservaçã­o da memória.”

Sobre o desfecho da ação, Vinicius afirma que, qualquer que seja o resultado, ela serviu para inibir a prática de preconceit­o e lembrar que o racismo é crime no Brasil.

“Racistas têm que ser expostos. Sempre.”

 ?? Arquivo pessoal ?? O historiado­r Vinicius Wu exibe documento do avô Akit, que saiu da China para o Brasil em 1925
Arquivo pessoal O historiado­r Vinicius Wu exibe documento do avô Akit, que saiu da China para o Brasil em 1925

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