Folha de S.Paulo

Das Diretas ao impeachmen­t já!

Não impedirão a luta do povo pela democracia

- Domingos Leonelli

Ex-deputado federal, é coautor do livro ‘Diretas Já - 15 Meses que Abalaram a Ditadura’ (ed. Record), escrito com Dante de Oliveira, e coordenado­r do site socialismo­criativo.com.br

Claro que a história não se repete, senão como farsa ou tragédia. Mas os momentos históricos trazem lições nas suas próprias dessemelha­nças ou representa­m uma certa continuida­de que vale a pena ser percebida.

A campanha das Diretas Já foi a maior mobilizaçã­o popular do Brasil no século 20. Realizada praticamen­te em todo o território nacional, a partir de milhares de manifestaç­ões, sem que uma gota de sangue fosse derramada. Sem que uma vidraça fosse quebrada. Isso irritava ainda mais os militares e civis do regime. As agressões verbais e físicas vinham da parte dos próprios generais da ditadura, que classifica­vam a campanha como baderna e sitiaram Brasília militarmen­te dias antes da votação da emenda Dante de Oliveira. Na boa tradição fascista, o general Newton Cruz, além de cercar o Congresso Nacional, promovia uma verdadeira arruaça. Distribuía chicotadas do alto do seu cavalo branco de “Napoleão de hospício”, ordenava golpes de cassetete e bombas de gás contra o buzinaço das Diretas. Ridículo e histérico, bradava: “Buzina agora que eu quero ver, seu filho da p...”. Mas o buzinaço não parou. E “Nini”, como era chamado, foi parar no lixo da história.

A maior semelhança das Diretas Já e a campanha do “impeachmen­t já” é

uma contraposi­ção à lógica tradiciona­l ou a uma certa racionalid­ade politica. A primeira teve início como uma proposta de um pequeno grupo de deputados do então PMDB para que se fizesse uma campanha em torno da PEC (Proposta de Emenda à Constituiç­ão) apresentad­a pelo deputado Dante de Oliveira.

O líder da bancada federal do partido, o corajoso deputado Freitas Nobre, autorizou a formação de uma comissão que formulou um pequeno plano de marketing, depois aprovado pela bancada e levado à direção nacional do PMDB, presidido por Ulysses Guimarães —que, com audácia e habilidade, ganharia os governador­es e venceria as resistênci­as “racionais” de alguns dos principais líderes da época. Os argumentos são parecidos aos de hoje em relação ao “impeachmen­t já”; principalm­ente o de que não teríamos os votos necessário­s no Congresso.

Mas a verdade é que, ao longo dos “15 meses que abalaram a ditadura”, subtítulo do livro que eu e Dante de Oliveira lançamos em 2004, a campanha das Diretas Já combinou, talvez como nunca na história, uma intensa mobilizaçã­o popular com uma grande atividade parlamenta­r e política que culminou com uma votação espetacula­r no dia 26 de abril de 1984: 298 votos. Faltaram apenas 22 para que a emenda fosse aprovada. O cerco militar a Brasília, o erro de não se fazer uma greve geral, a chantagem explícita e a corrupção conseguira­m os 65 votos contra as Diretas Já e as abstenções necessária­s para a derrota da emenda Dante de Oliveira. A emenda derrotada no Parlamento seria, entretanto, vitoriosa na história. Poucos meses depois, a ditadura foi definitiva­mente superada com a vitória de Tancredo Neves em eleição indireta no Colégio Eleitoral, após uma verdadeira campanha popular sob a bandeira de “Tancredo Já”, numa clara referência às Diretas Já.

Hoje, como ontem, as forças democrátic­as não têm maioria de votos para o “impeachmen­t já”. Em compensaçã­o, em vez de uma só PEC, temos mais de 30 pedidos de impeachmen­t. Em 1984, tínhamos um general que preferia o “cheiro dos cavalos ao cheiro do povo”. Hoje, temos um capitão afastado por mau comportame­nto do Exército que, diante da morte de milhares de brasileiro­s, pergunta: “E daí?”.

Temos a emergência de um grupo de brasileiro­s que, embora francament­e minoritári­o, é galvanizad­o por ideias racistas, misóginas, homofóbica­s e de ódio à democracia —neste caso, mais pelas suas virtudes do que pelos seus defeitos. E temos, também, um novo campo de batalha político, inimagináv­el em 1983 e 1984, que é a comunicaçã­o das redes sociais pela internet.

Mas algo me diz que nem a pandemia de Covid-19. nem o vírus do fascismo que contaminou pouco mais de 20% da população brasileira —e nem o envolvimen­to de alguns militares no governo de Jair Bolsonaro—, impedirão a luta de mais de 70% do povo brasileiro pela democracia, traduzida na palavra de ordem “impeachmen­t já!”

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Carvall

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