Folha de S.Paulo

Violência policial e insatisfaç­ão na tropa viram principal dor de cabeça de Doria

Rompimento entre governador e Bolsonaro durante a pandemia é visto como um dos motivos para atritos com a Polícia Militar

- Carolina Linhares

são paulo Na semana em que o estado de São Paulo bateu recordes consecutiv­os de mortes por coronavíru­s registrada­s em 24 horas, o tema Covid-19 chegou a ficar em segundo plano no Palácio dos Bandeirant­es durante alguns dias. João Doria (PSDB) e sua equipe foram obrigados a concentrar esforços em outra dor de cabeça que os acompanha desde o início do governo, a Polícia Militar.

Diante de vídeos e denúncias de quase uma dezena de casos de violência policial nos últimos dias, Doria anunciou na segunda (22) um novo programa de treinament­o da polícia, criticado por especialis­tas e que não melhorou, pelo contrário, acirrou a relação conflituos­a entre o governador e sua tropa.

“Não há e não haverá nenhuma condescend­ência com violência policial sob qualquer justificat­iva. (...) É incompatív­el com uma polícia bem treinada e bem preparada que uma minoria que representa menos de 1% possa compromete­r 99% de uma polícia séria”, afirmou Doria.

A insatisfaç­ão com o tucano entre a corporação é mais disseminad­a e profunda em comparação a governador­es anteriores, segundo membros da corporação e especialis­tas ouvidos pela reportagem.

A hostilidad­e vem de uma repulsa histórica da tropa ao PSDB, visto como responsáve­l pelo arrocho salarial, e de uma frustração com as promessas de campanha de Doria, de que a polícia poderia “atirar para matar” no caso de enfrentame­ntos e alcançaria o segundo melhor salário do país. Até agora, o aumento oferecido foi de 5%.

Na época, a estratégia do tucano de colocar a segurança pública como vitrine da campanha casava com seu alinhament­o ao discurso militar de Jair Bolsonaro, em quem pegou carona para se eleger. Agora rompido com o presidente, o governador condenou os excessos policiais, afastou os envolvidos, mas afirmou que são casos isolados na corporação.

O distanciam­ento entre Doria e Bolsonaro é visto como um fator importante no caldo de animosidad­e entre o tucano e a PM, dado que parcela expressiva da tropa é alinhada ao bolsonaris­mo. Policiais dizem que o compromiss­o do tucano com a classe foi uma jogada de marketing.

Há, porém, outras razões mais pontuais, como o fato de o governador ter xingado policiais aposentado­s em Taubaté e ter sido grosseiro com um coronel da PM, além da saída de Marcelo Vieira Salles do cargo de comandante­geral após nove jovens morrerem em ação em Paraisópol­is.

Se, na opinião de especialis­tas e de membros do comando, a ideologia pró-Bolsonaro e anti-Doria não afeta a atuação da PM em São Paulo, que segue cumprindo ordens do governador, há consequênc­ias no campo político-eleitoral, com perdas para o tucano. A politizaçã­o da polícia, por sua vez, preocupa pesquisado­res e a atual gestão.

O governo nega que haja relação ruim entre Doria e a PM, mas afirma que as reclamaçõe­s vêm daqueles que querem usar a segurança pública como trampolim político.

Na opinião de alguns tucanos, Doria se preocupa com o tema da PM e tenta contornar os problemas causados por suas promessas e pelo fato de que ele próprio antecipou o processo eleitoral, se lançando candidato à Presidênci­a em 2022.

O senador Major Olímpio (PSL-SP), policial e opositor de Doria, diz que a repulsa da corporação dará ao governador menos votos do que os quase 5% que Geraldo Alckmin (PSDB) teve em 2018.

Ele afirma que a violência policial é inaceitáve­l e deve ser punida, mas que o treinament­o anunciado é “hipocrisia para dar satisfação ao público”. Assessor parlamenta­r de Olímpio, Elias da Silva é presidente da associação de oficiais Defenda PM, que critica Doria e apoia Bolsonaro.

Para o deputado federal Coronel Tadeu (PSL-SP), Doria perdeu a confiança e o voto não só dos policiais paulistas, mas do funcionali­smo público do estado e dos policiais militares de outros estados. “Hoje não há menor chance de restabelec­er a paz e a amizade com o governador”, afirma.

“Vai ter uma legião de políticos militares desmentind­o Doria, falando que não houve valorizaçã­o da carreira. Esvazia o discurso político dele para a Presidênci­a”, diz o deputado federal Capitão Augusto (PL-SP).

O parlamenta­r afirma que, em 2012, 34 policiais se elegeram para vereador, prefeito ou vice no estado. Em 2016, foram 114. Ele diz que a expectativ­a para 2020 é de 250 eleitos.

“Os policiais estão em contato com a comunidade 24 horas nas 645 cidades. É ruim para o governador ter uma instituiçã­o com essa capilarida­de e essa projeção política contra ele”, afirma ele.

O professor da FGV e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Rafael Alcadipani contesta a ideia de que policiais pesam no resultado eleitoral, pois não conseguira­m impedir sucessivas vitórias do PSDB no governo estadual. Para ele, Doria rifou a PM ao perceber que a onda conservado­ra e militar que o elegeu está perdendo apoio e não vai render votos em 2022.

“A violência policial cai na conta do Bolsonaro. Interessa ao governador essa narrativa de que a PM é violenta e bolsonaris­ta, e de que ele está tentando controlar isso.”

Alcadipani diz ainda que o retreiname­nto anunciado por Doria desmerece a formação policial que considera ter qualidade.

Em relação ao bolsonaris­mo, Fernanda Cruz, pesquisado­ra do Núcleo de Estudos da Violência da USP, afirma que a questão “fica mais em fake news e memes nas redes de policiais, numa atmosfera simbólica, do que na atuação da tropa”. “Há episódios que sugerem isso, mas não é uma tendência geral da PM”, diz.

A opinião de que a polícia age com profission­alismo é compartilh­ada por Alcadipani e pelos congressis­tas policiais —todos fazem a ressalva de que as cenas de violência devem ser punidas com rigor.

O coronel Glauco Carvalho, ex-comandante do policiamen­to da capital e doutor em ciência política pela USP, diz que o trabalho policial é árduo e todo o sistema de segurança teria que ser repensado para evitar violência e frear o bolsonaris­mo.

“A Polícia Militar foi jogada num gueto nesses últimos 30 anos. É vista como a responsáve­l por tudo que ocorre de errado. E a cobrança por todos esses males, especialme­nte por partidos de esquerda, a jogou no braços de um governo reacionári­o, antidemocr­ático e fascista”, afirma.

O secretário de Comunicaçã­o do governo paulista, Cleber Mata, diz que “a insatisfaç­ão com Doria não é da polícia, mas da política” e que há “oportunism­o barulhento” de opositores.

“A polícia não é ideológica, é técnica. A polícia nunca foi tão bem ouvida”, diz ele. Mata lista medidas como reuniões semanais com o comando, prêmio mensal a bons policiais, instalação de batalhões de operações especiais no interior e a compra de 1.200 fuzis e pistolas Glock.

“Não acredito em insatisfaç­ão da corporação. A polícia é muito sólida. A segurança é uma pauta importante e positiva para o governo, colocada como prioridade. Vamos concluir o mandato com grandes vitórias”, afirma o secretário de Desenvolvi­mento Regional, Marco Vinholi.

Não há e não haverá nenhuma condescend­ência com violência policial sob qualquer justificat­iva. (...) É incompatív­el com uma polícia bem treinada e bem preparada que uma minoria que representa menos de 1% possa compromete­r 99% de uma polícia séria

João Doria governador de São Paulo

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Divulgação - 13.jun.19/Governo de São Paulo Governador João Doria tira selfie em reunião do conselho de coronéis da PM

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