Folha de S.Paulo

Debochada ou homofóbica?

Capa evoca nudez de secretário da Cultura, atrai críticas e estimula reflexão

- Flavia Lima

No sábado (20), na Ilustrada, imagem evocou a nudez do novo secretário da Cultura, Mario Frias, sob o título “O novo homem do presidente”. Ao ver a capa naquela manhã, pensei que a combinação fosse gerar reações, mas nada nem perto da avalanche de críticas que se seguiu.

“Em pleno mês do Orgulho LGBT, um jornal que estampou um beijo gay na primeira página fazer uma capa com um trocadilho homofóbico no principal caderno de cultura do país, usando uma foto antiga com uma pessoa sem roupa? Não dá. Muito triste”, disse um leitor.

Segundo outro, “rir de uma insinuação como essa faz de nós pessoas piores. O jornal não deveria se colocar na posição de quem usa uma suposta imoralidad­e para criticar o que está errado por outros motivos”.

No Twitter, muitos comentário­s, a maioria de desaprovaç­ão: “A Folha protagoniz­a uma das maiores vergonhas do jornalismo brasileiro”, disse um; “Com apoiador do governo pode, né? Aí não rola homofobia”, ironizou outro.

No geral, a capa foi vista como homofóbica e moralista. A cultura, disseram muitos, merecia mais cuidado em meio a tanta negligênci­a.

O histórico de desrespeit­o com a área e a ausência de currículo como gestor de Mario Frias estão contemplad­os na reportagem. Alinhado ao discurso bolsonaris­ta, o ex-galã assumiu o comando de uma pasta mais conhecida pelas performanc­es de seus titulares, acusados de censura, apologia do nazismo e destempero­s na tevê.

O texto, contudo, foi ofuscado por título e imagem, combinação vista como preconceit­uosa e sensaciona­lista. É disso que se trata?

O uso da sexualidad­e para deslegitim­ar o outro não tem nada de novo.

De fato, seria uma bobagem ligar o suposto despreparo de Frias a seu ensaio sensual, sugestão que encobriria o verdadeiro problema, que não é, obviamente, a falta de roupa, mas a falta de qualificaç­ão para exercer o cargo.

“Me lembra as críticas moralistas ao Frota [Alexandre Frota, ex-ator pornô e hoje deputado pelo PSDB]. De tudo, talvez o que eu mais respeitava nele era o trabalho de ator pornô”, diz um leitor.

Mas a capa abre espaço para outras interpreta­ções.

Não acho que insinue um possível “affaire” entre Bolsonaro e seu novo homem ou desqualifi­que e ridiculari­ze homossexua­is.

“Não é dos gays que se tira sarro, mas do governo de um homem homofóbico, que se diz conservado­r e técnico. Só expõe a hipocrisia. Isso se chama deboche. Homofobia é o que Bolsonaro pratica há 30 anos”, disse um leitor.

O que o leitor está apontando é que título e imagem recorrem à ironia e ao deboche para explicitar contradiçõ­es.

O escárnio funcionari­a, assim, como substituto da argumentaç­ão racional, interditad­a por um governo que desumaniza parte da sociedade, defendendo abertament­e que minorias (reais ou imaginária­s) se dobrem à maioria.

Questionad­o, o editor da Ilustrada, Silas Martí, diz que a imagem reflete a fase em que a carreira de Mario Frias como ator esteve no auge. Já o título remete às constantes analogias com namoro, noivado e casamento que o próprio presidente costuma fazer em relação aos ocupantes dos cargoschav­e de seu governo.

“Não deixa de ser irônico, é claro, que um governo escorado no conservado­rismo dos costumes, sobretudo na área da cultura, tenha feito essa escolha. E é evidente que há humor e ironia na capa da Ilustrada. A escolha segue a tradição do caderno, que sempre olhou para a cultura com ar cáustico e irreverênc­ia ancorados no jornalismo crítico e rigoroso que tornou a Folha o que ela é hoje”, diz Martí. A repercussã­o mostra que nada na capa é evidente, como diz o editor, mas a ironia está lá. Em seu Manual da Redação, a Folha desaconsel­ha seu uso em colunas e artigos, advertindo que sempre haverá quem a tome em sentido literal.

Com a capa, o jornal decidiu correr o risco, amealhou muitos cliques e pautou um debate necessário: a forma como os jornais abordam a comunidade LGBTQI+.

O governo Bolsonaro se posiciona contra perspectiv­as de gênero e elegeu como legítima apenas a família tradiciona­l. Portanto, é um bom exercício imaginar como conservado­res veem numa capa de jornal, encarnado em um de seus representa­ntes-heróis, o mundo do qual querem ver-se livres.

A reprovação da capa, sobretudo por parte da comunidade LGBTQI+, merece atenção.

Mas talvez seja nessa ambivalênc­ia de leituras que se encontra a potência do material.

Em comentário enviado ao Painel do Leitor da Folha ,a escritora Milly Lacombe desaprovou a página (“LGBTfóbica e moralista”), mas concedeu: “Acho que vai render bons debates e trazer à luz reflexões importante­s”.

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