Folha de S.Paulo

A memória do chão amazônico

Terra preta, criada artificial­mente há séculos, mudou diversidad­e da floresta

- Reinaldo José Lopes Jornalista especializ­ado em biologia e arqueologi­a, autor de “1499: O Brasil Antes de Cabral” | dom. Reinaldo José Lopes, Marcelo Leite | seg. Paola Minoprio | qua. Esper Kallas |

Numa das muitas elegias sobre o passado lendário que fazem do romance de fantasia “O Senhor dos Anéis” uma leitura inesquecív­el, o elfo Legolas dá voz às pedras.

Ao passar por uma região que um dia foi habitada por grandes arquitetos de seu povo, Legolas diz que é como se as próprias rochas ali falassem dos antigos habitantes: “Fundo nos escavaram, belas nos edificaram; mas eles se foram”.

O lamento rochoso seria improvável na maior parte da Amazônia, já que paredões de pedra são escassos por lá, mas o chão amazônico também tem memórias profundas de seus primeiros habitantes.

São lembranças gravadas na própria composição química do solo, em sua fertilidad­e e nas árvores que crescem nele, conforme têm mostrado vários estudos ao longo dos anos.

Refiro-me ao que se costuma chamar popularmen­te de “terra preta de índio”, um tipo de solo escuro (como o apelido indica), rico em matéria orgânica e certos minerais que costuma destoar da terra avermelhad­a e acidificad­a que caracteriz­a a maior parte da Amazônia brasileira.

Segundo algumas estimativa­s, até 3% do território amazônico correspond­eria às manchas de terra preta existentes hoje, o que só parece pouco quando se esquece do tamanho colossal da região; na verdade, é muita coisa.

Tudo indica que a terra preta começou a se formar com mais intensidad­e na maior parte da bacia amazônica nos primeiros séculos da Era

Cristã, numa espécie de relação simbiótica com os assentamen­tos indígenas, cada vez mais numerosos e populosos nessa época. (Esqueça a ideia da Amazônia pré-colonial “vazia”: calcula-se que, no momento do contato com os europeus, havia quase 10 milhões de pessoas vivendo na região.)

Ao que parece, diversos processos de manejo ambiental foram intensific­ando a formação desse tipo de solo. Descarte de fezes humanas e de carcaças de animais estão entre eles, assim como o de fragmentos de cerâmica, mas talvez o mais importante tenha sido a queima parcial e controlada de restos vegetais, o que encheu o solo de um tipo de carvão que ajuda a reter os nutrientes no solo.

A alquimia resultante dessa combinação de fatores foi tão poderosa que até hoje populações ribeirinha­s da Amazônia, e até moradores de cidades, usam a terra preta para turbinar suas hortas.

E um novo estudo indica que até a composição de espécies de árvores da floresta parece ter sido influencia­da por esse solo produzido pela ação humana.

Na pesquisa, publicada na revista Global Ecology and Biogeograp­hy, Edmar Almeida de Oliveira e Ben Hur Marimon-Junior, da Universida­de do Estado de Mato Grosso, junto com colegas da Universida­de

de Exeter (Reino Unido), estudaram trechos de terra preta em várias localidade­s dos território­s mato-grossense e paraense. Avaliaram o número de espécies e as caracterís­ticas das plantas na vizinhança do solo “artificial” e em áreas de mata sem terra preta no entorno, bem como os detalhes do solo propriamen­te dito.

A equipe comprovou que as manchas de terra preta são mais férteis que os solos naturais próximos e verificou diferenças na composição de espécies: mais árvores com frutos comestívei­s, como jatobá e taperebá, no solo escuro. Isso provavelme­nte vale para outras regiões da Amazônia, uma floresta cuja riqueza, em grande parte, é a de um imenso pomar indígena.

(PS: o trecho de “O Senhor dos Anéis” foi traduzido por meu colega Ronald Kyrmse.)

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