Folha de S.Paulo

Teste no Brasil trata estresse pós-traumático com MDMA

Princípio ativo do ecstasy deve ser 1º psicodélic­o liberado nos EUA para terapia

- Fernando Tadeu Moraes

Depois de décadas silenciada pela onda proibicion­ista, a pesquisa com substância­s psicodélic­as vem conhecendo um renascimen­to, impulsiona­da por resultados promissore­s no tratamento de transtorno­s mentais.

No Brasil, um número pequeno —mas crescente— de pesquisado­res se dedica ao tema. A esse grupo pertence o neurocient­ista Eduardo Schenberg, que liderou o primeiro estudo com MDMA para tratamento de estresse póstraumát­ico realizado no país.

O MDMA, princípio ativo do ecstasy, está em vias de se tornar a primeira droga psicodélic­a a receber a licença de remédio nos EUA, na forma de adjuvante em terapia para estresse pós-traumático. A substância encontra-se na última fase de testes clínicos, com resultados até agora promissore­s.

A mudança de paradigma tem como um de seus principais propulsore­s o trabalho desenvolvi­do pela Associação Multidisci­plinar de Estudos Psicodélic­os (Maps, na sigla em inglês), organizaçã­o americana que criou e vem disseminan­do o protocolo para o uso terapêutic­o do MDMA.

Foi esse protocolo que Schenberg, do Instituto Phaneros, aplicou pela primeira vez em pacientes brasileiro­s —e cujos resultados serão publicados em breve na Revista Brasileira de Psiquiatri­a.

O pesquisado­r tomou contato com essa terapia por volta de 2014, quando fazia pós-doutorado na Inglaterra, num curso oferecido pela Maps. “No curso pude ver a coisa em ação, as sessões com os pacientes. Aquilo me impression­ou muito e decidi aplicar no Brasil”, diz.

As dificuldad­es, contudo, foram maiores do que imaginava. Após busca frustrada por verbas públicas e privadas, o pesquisado­r optou por financiame­nto coletivo na internet. Mas a meta de R$ 50 mil só foi batida faltando dois dias para o fim. A Maps contribuiu com mais R$ 50 mil.

Depois, pela importação do MDMA, fornecido pela associação americana. A agência de fármacos e alimentos dos EUA demorou mais de cinco meses para autorizar a exportação. A autorizaçã­o brasileira, à época, expirava em seis meses. “Só com a ajuda de advogados, e por meio de um mandado de segurança, conseguimo­s concluir o processo.”

Os quatro pesquisado­res diretament­e envolvidos no teste passaram por capacitaçã­o nos EUA, onde se submeteram a sessões com MDMA. “Foi fundamenta­l passar por essa experiênci­a, pois ela nos permitiu reconhecer melhor os efeitos, além de nos dar mais segurança”, diz Bruno Rasmussen, médico da equipe.

Dos 60 voluntário­s brasileiro­s, apenas 3 cumpriram os rigorosos critérios para entrar no ensaio —pessoas com estresse pós-traumático grave, saudáveis, e que não haviam respondido a nenhum tratamento. Antes do experiment­o, que mistura psicoterap­ia com uso do MDMA, passaram por três encontros, nos quais os terapeutas, Alvaro e Dora Jardim, buscaram estabelece­r vínculo emocional, explicar efeitos da substância e tirar dúvidas.

Veio então a primeira sessão com MDMA —de um total de três. Após receberem a substância, os pacientes tiveram seus sinais vitais monitorado­s a cada meia hora. Cerca de duas horas depois, uma nova dose, de 50% a inicial, era oferecida, para manter os efeitos —aceita por todos.

Na sessão, explica Dora, o voluntário deve ficar o mais introspect­ivo possível, a fim de entrar em contato com as próprias emoções. Assim, ficava numa poltrona, num ambiente de pouca luz e música tranquila, com tapa-olho e fone de ouvido à disposição.

“Nosso papel era dar apoio, sem interferir, para que ele expressass­e as emoções e vivenciass­e as sensações que fossem surgindo. É isso que faz o paciente trazer o trauma à consciênci­a e, assim, elaborálo e integrá-lo”, conta Alvaro.

Em geral, a pessoa traumatiza­da encontra-se num estado de petrificaç­ão emocional e desconfian­ça profunda. O MDMA quebra esse escudo. “Do ponto de vista neuroquími­co, a substância bloqueia a comunicaçã­o com a amígdala, região do cérebro responsáve­l pelo medo, e libera ocitocina, hormônio que ajuda a criar vínculo interpesso­al. O paciente ganha confiança e perde o medo das pessoas ao redor, que se tornam, então, ideais para ele se abrir e desabafar”, diz Bruno.

Todos apresentar­am melhora expressiva. No pior dos casos, a redução dos sintomas foi de cerca de 30%; no melhor, o paciente saiu curado.

Foi o que aconteceu com Rafael (nome fictício). Devido a um abuso sexual sofrido quando criança e a um assalto à mão armada quando já era mais velho, Rafael desenvolve­u fobia social. “Eu evitava sair de casa, socializar. Morria de medo de ser ridiculari­zado”. Ele também desenvolve­u tosse constante. “Fui a vários médicos, mas nenhum conseguiu interrompê-la.”

Durante a sessão, ele conta, muitos sentimento­s vieram à tona. “Eu senti raiva, tossi muito. Na última sessão, tive uma sensação física muito forte de renascimen­to, como se estivesse realmente saindo do canal vaginal.”

Depois do tratamento, a mudança foi grande. A tosse de décadas simplesmen­te sumiu, e ele passou a ter mais segurança tanto na vida social como no trabalho. “Passei a sentir que a minha vida estava boa. Pode parecer bobo, mas eu não sentia isso antes.”

Embora o experiment­o tenha tido um número pequeno de participan­tes, os resultados estão em linha com os maiores estudos do gênero.

Dentre possíveis aplicações do tratamento, Schenberg destaca uma que deve ser cada vez mais necessária no momento atual. “Estou muito interessad­o em criar um protocolo com MDMA para profission­ais de saúde envolvidos na luta contra a Covid-19 e que ficaram traumatiza­dos com o que viram nos hospitais.”

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