Folha de S.Paulo

Não posso idiotizar o meu processo para ser o top 50

Após três anos sem lançar álbuns, rapper fala da prática da ausência e de disputa judicial envolvendo música com Pabllo Vittar

- Rico Dalasam Bianka Vieira

Não houve folião em 2017 que tenha passado incólume pelo hit carnavales­co “Todo Dia”, cantado pela drag Pabllo Vittar e pelo rapper Rico Dalasam. Em sua receita de sucesso, a música trazia o refrão-chiclete “eu não espero o Carnaval chegar pra ser vadia/ Sou todo dia” e milhares de visualizaç­ões no YouTube poucas semanas após seu lançamento.

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Na esteira dos trios elétricos, vieram uma disputa judicial e um hiato na carreira de Rico que só tiveram desfecho passados três anos, num momento em que o próximo Carnaval ainda é uma incerteza diante da crise sem precedente­s provocada pela Covid-19 no país.

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Um desacordo sobre os direitos autorais da música levou à sua retirada das plataforma­s digitais em agosto de 2017, depois de o rapper entrar na Justiça. Rico, reconhecid­o como autor da canção, reivindica­va participaç­ão também como intérprete, condição creditada apenas a Vittar. Em março, um acordo com os produtores Rodrigo Gorky e Arthur Gomes definiu que os três receberão partes iguais dos direitos da canção como autores e intérprete­s.

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“Eu não estaria fazendo as músicas que estou fazendo hoje se não tivesse vivido essa experiênci­a. Ela serviu para descobrir como tratar arte e negócios”, diz Rico Dalasam.

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Desde o episódio, o rapper de 30 anos de idade optou pelo que ele chama de “prática da ausência”. Suas fotos do Instagram foram excluídas, e o cantor não lançou mais nenhum compilado de músicas até maio deste ano, quando trouxe a público o EP “Dolores Dala Guardião do Alívio”.

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À coluna, ele diz que a decisão teve mais a ver com o desgaste sofrido após sua incursão no mundo da música pop do que coma disputa judicial .“É um lugar como ut rore ló gio,é videoclipe paratudo. Não dá pra você fazer isso sendo o gestor e o provedor [das canções]”, diz.

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“[Fazer música popular] É um trabalho cheio de camadas. Quando eu sento pra fazer isso, eu sento como um cientista social, um antropólog­o, um geógrafo. Não é pra parecer algo que aconteceu na mesa do bar”, afirma. “Eu não posso idiotizar o meu processo só porque isso vai me pôr no top 200, 50 do Spotify”, segue.

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No pop, diz o rapper, críticas e pautas políticas tendem a ser esvaziadas. “Minha mão coça, minha língua coça. Eu acho muito especial quem está livre dessas agonias. Eu queria falar bobeira no Twitter, que minha vida fosse selfie, mas não dá.”

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Jefferson Ricardo da Silva nasceu em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, em uma família de mais quatro irmãos sustentada por uma mãe-solo. “Era um cômodo para seis pessoas. Nossa casa foi construída por uma mulher que tirava o barranco na mão e que trabalhava dia e noite”, conta.

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Filho caçula, durante seu desenvolvi­mento Rico contou com o apoio coletivo de seus irmãos para traçar um caminho diferente do deles ao frequentar aulas de inglês e conseguir bolsas em colégios particular­es. “Cada um pagava uma coisa, mesmo que fosse um lápis de cor”, relembra.

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“Mas se você está numa rua onde tudo é precário, você está no mesmo processo de manutenção de misérias”, pondera.

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“Se você vai num supermerca­do no centro, você vai entender que as pessoas estão comprando um peixe ou alguma outra coisa para fazer uma receita, um prato. O se alimentar é algo específico, tem a ver com o prazer, não com suprir uma necessidad­e. Já na periferia, você pensa: ‘Tenho que comer porque eu tenho que trampar, não posso ficar doente’. São dois universos.”

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Foi no final de 2014, já como Rico Dalasam, que conquistou a vida pública ao promover o single “Aceite-C” no YouTube. Poucos meses depois, ele lançava seu EP de estreia, “Modo Diverso”, e ganhava seu primeiro carimbo em um passaporte para gravar um videoclipe em Nova York, nos Estados Unidos.

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“Sem perceber, você já não é só um artista, você é uma marca, você fala com um público. Tem uma hora em que tudo isso acumula”, fala, sobre parte do processo de estafa que o levou a pisar no freio em 2017. “Você nunca conta que, para a sua saúde, às vezes você precisa parar. Você acha que tem que correr, viajar o máximo possível, beijar na boca.”

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Em seus primeiros lançamento­s e realizaçõe­s, Rico foi repetitiva­mente apresentad­o como o primeiro rapper brasileiro abertament­e homossexua­l, posição que era compreendi­da como solitária. “Era um lugar que eu nem sabia o que significav­a. Eu entendia, mas nunca nem tinha namorado, não sabia nem dizer como eu amava ao certo”, diz.

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“Tem uma coisa muito específica que acontece com jovens negros em comparação com jovens brancos, héteros ou não, que é a idade que se passa a ter experiênci­as afetivas. Eu mesmo passei a ter um namoro só com 25 anos, e não sou um caso isolado. Amigas, amigos, são mil depoimento­s.”

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Relacionam­entos inter-raciais também não pressupõem leveza, afirma Rico. Mesmo que haja troca de afetos, as diferenças sociais se fazem presentes no cotidiano do casal.

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“Você lida com uma enxurrada de disparidad­es. Por exemplo, para quem o garçom entrega a conta. No meu caso, mesmo sendo dois homens, vai para a pessoa branca”, diz.

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“A grande herança que temos da escravidão é que tudo o que não é branco, é específico, e tudo o que é branco, é universal. Cultura, saberes, subjetivid­ades, desejos, experiênci­as. Não estou fazendo juízo de valor, mas falando sobre coisas latentes e que estão sendo vividas a todo tempo por pessoas que estão só tentando descobrir como ama.”

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Acostumado a promover seus trabalhos no ambiente virtual, Rico diz não sentir tanto os abalos da pandemia sobre a indústria fonográfic­a ao lançar seu EP. O estado das coisas, por outro lado, influencio­u diretament­e a seleção das faixas que seriam disponibil­izadas em “Dolores Dala Guardião do Alívio”.

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“Decidi contar histórias enquanto o mundo não reinaugura. É sobre vida adulta e relações. Lançar um negócio super festão? Ninguém tem nem festa pra ir. Fica meio aquela coisa de cantar enquanto o navio afunda”, brinca, ao dizer que está habituado a contextos desafiador­es.

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“O ‘Modo Diverso’ a gente produziu numa casa esperando passar carro do ovo por causa do barulho, esperando acabar o culto [religioso] do vizinho. A gente não endossa e nem romantiza isso, mas a gente tem isso de fazer as coisas rolarem em um modo e em um momento instável”, diz.

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Para além de músicas centradas nos dilemas das relações adultas, o retorno do rapper traz uma nova proposta para seu estilo, até então marcado por roupas bufantes, cores vibrantes e múltiplas camadas e texturas. Com o auxílio da câmera de seu celular, ele mostra à coluna o seu guarda-roupa, agora resumido a uma arara com algumas peças penduradas. “Tudo foi mágico, mas não é mais o momento.”

Decidi contar histórias enquanto o mundo não rei-naugura. É sobre vida adulta e relações. Lançar um negócio super festão? Ninguém tem nem festa pra ir

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“Eu hoje estou cantando pra lavar. Você tem que guardar um lugar de estabilida­de emocional para visitar o alívio, seja quando deita, quando está sozinho, quando está no front ou no palco.”

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Para um futuro próximo, Rico já tem uma série de composiçõe­s finalizada­s e fala em parcerias com nomes como Russo Passapusso, do grupo Baiana System, com quem gosta de trocar aprendizad­os sobre festas populares e o imaginário brasileiro.

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Se voltaria a trabalhar com Pabllo Vittar? “Acho que eu não posso falar ‘nunca’ para as coisas. Não adianta nada trabalhar com Exu e orixás e tratar a vida de um modo que feche caminhos. Eles precisam estar sempre abertos”, responde.

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Larissa Zaidan/Divulgação Retrato do rapper Rico Dalasam

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