Folha de S.Paulo

Não seja você mesmo

Negar a minha natureza é um exercício que faço com proveito desde pequeno

- Ricardo Araújo Pereira Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno” | dom. Ricardo Araújo Pereira | seg. Claudia Tajes | ter. Manuela Cantuária | qua. Gregorio Duvivier | qui. Flávia Boggio | sex. Renato Terra | sá

Dizem que a federação de ginástica suíça resolveu investir forte na modalidade e contratou a melhor treinadora chinesa.

Passou um ano e as ginastas suíças continuara­m longe do extraordin­ário desempenho das chinesas. Outro ano, e mais outro —e a ginástica suíça não evoluía como se esperava. Os responsáve­is suíços chamaram a treinadora: “Que se passa? São as condições de treino?”. Ela: “Não, aqui tenho melhores condições do que na China”.

Eles: “As nossas moças não têm talento?”. Ela: “Têm. Tanto ou mais talento do que as moças chinesas”. Eles: “Então qual é o problema?”. Ela: “É que aqui eu não lhes posso bater”.

Não consegui apurar se a história é verdadeira, mas concordo com a treinadora, seja ela real ou imaginária, quanto às ricas propriedad­es pedagógica­s de um bom tapa na cara.

Antes que me acusem de crueldade, deixem-me dizer que só aprovo o método para meu caso pessoal. Outras pessoas terão facilidade em aprender de outro jeito. Eu sou particular­mente sensível ao tapa.

Desde que comecei a praticar kickboxing, ficou muito claro que, para mim, nada tem mais valor didático do que o impacto do punho do treinador no meu nariz. O kickboxing obriga o praticante a negar a sua própria natureza. O primeiro instinto é fechar os olhos: não convém; dá vontade de virar as costas: as regras proíbem; apetece deitar no chão em posição fetal: é malvisto.

Negar a minha própria natureza é um exercício que faço com proveito desde pequeno. Os gurus da autoajuda recomendam o contrário: seja você mesmo. No meu caso, é um conselho idiota, como me parece óbvio. Se eu fosse o Shakespear­e ou o Leonardo da Vinci, creio que valeria a pena tentar ser eu mesmo. Sendo eu, é ajuizado ter ambições mais elevadas e procurar ser outra pessoa melhor. Ser eu mesmo é manifestam­ente pouco.

Do mesmo modo, quando Jesus diz “ama o próximo como a ti mesmo”, está a esquecer-se de gente como eu, com uma autoestima tão baixa que, se eu amar os outros como a mim mesmo, acabo a execrar todo o mundo. Também tenho dificuldad­e em cumprir a regra “não faças aos outros o que não gostariam que te fizessem a ti”.

Parece estranho, mas muitas vezes —designadam­ente, e para dar apenas um exemplo, na cama—, é frequente exigirem que eu faça coisas que não gostaria que me fizessem a mim. E eu faço, pondo em causa todo o sistema moral do cristianis­mo. Nem todos conseguem derrubar milênios de civilizaçã­o sem sair da cama.

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Luiza Pannunzio

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