Folha de S.Paulo

Esquerda, volver

- Por Sidarta Ribeiro Neurocient­ista e fundador do Instituto do Cérebro da UFRN (Universida­de Federal do Rio Grande do Norte), é autor de ‘O Oráculo da Noite: A História e a Ciência do Sonho’ (Companhia das Letras) Ilustração Ana Elisa Egreja Artista plás

Em conversa ficcional entre dois amigos —cujos nomes ecoam personagen­s do livro ‘Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo’ (1632), de Galileu Galilei—, autor reflete sobre temas da atual conjuntura política, sanitária e econômica do Brasil, como a relação das Forças Armadas com o governo Bolsonaro e a negligênci­a do Executivo nas decisões para combater a pandemia da Covid-19

Simplícia e Sagredo, amigos de longa data, se encontram no boteco virtual no domingo, 28 de junho de 2020, no Brazil.

— Pois eu digo que a mente é uma democracia. Esquerda ou direita? Isto ou aquilo? Sim ou não? Os pensamento­s convergem e divergem, concordam e discordam, vetam e votam. O que a gente pensa é quase sempre uma balbúrdia enorme. E o que a gente termina por fazer, afinal, é o que realmente interessa. Isso é da condição humana. Até mesmo os ditadores trazem dúvidas na cabeça. Vou abrir uma gelada em homenagem a esse pensamento, minha cara Simplícia.

— Pode ser, mas os militares não têm dúvidas. Estão fechados com o homem até o fim, Sagredo. — Truco. Já estiveram, por broncas justificad­as e injustific­adas com o PT. Mas agora acabou. A casa caiu. Eles não vão segurar esse cometa. — Será? Até agora seguraram, né? Aliás, elegeram o cara. E com certeza eles já sabiam de tudo antes do ventilador espalhar a merda.

— Mas agora é diferente, a podridão está vindo à tona.

— Por isso mesmo que estou dizendo: existe um constrangi­mento geral, mas no íntimo eles concordam —ou no mínimo não se opõem— ao que o governo vem fazendo, ou melhor: desfazendo. Detonando tudo. — Pois eu digo que o melhor da tradição militar brasileira não abandonará sua missão constituci­onal. — Que tradição? A de trucidar o povo descalço do Paraguai e de Canudos? A de golpear a democracia, matar e torturar?

— Claro que não. Estou falando da tradição de Benjamin Constant, professor e engenheiro, estadista republican­o e pacifista. Estou falando do marechal Rondon, sertanista criador do lema de jamais matar índios: “Morrer se preciso for, matar nunca”. Estou falando do Apolônio de Carvalho, herói da resistênci­a contra o nazifascis­mo na Segunda Guerra Mundial, condecorad­o com a Legião de Honra pela França. Estou falando do general Felicíssim­o Cardoso, líder da campanha O Petróleo é Nosso e de ligas antifascis­tas pela emancipaçã­o nacional. Estou falando dos tantos militares patriotas que tiveram papel fundamenta­l na criação da Petrobras, Embraer, Embrapa e Finep.

— Pois eu discordo. Você está citando exceções. Acho que os militares não se dividem em bons e maus, na verdade eles são quase todos bem parecidos: querem defender o deles. Não viu o que fizeram na reforma da Previdênci­a, se dando bem em cima dos civis? E as atrocidade­s que estão fazendo e permitindo que façam com os indígenas agora? Eles querem mais é que acabem.

— Não exagera. Verás que um filho teu não foge à luta.

— Que bobagem! Só abrindo outra cerva, bora... Não se esqueça de que o lema do positivism­o era “o amor por princípio, a ordem por base; o progresso por fim”. A palavra amor foi retirada do lema da bandeira pelos militares que derrubaram dom Pedro 2º, inclusive o teu querido Benjamin Constant. Deixaram só ordem e progresso, sem reparar em nada as injustiças macabras da escravidão. E os militares de agora não garantem nem isso! Nem amor, nem ordem, nem progresso. — Concordo. Mas o que estou tentando te dizer é que, daqui pra frente, só vai melhorar. O fundo do poço foi agora.

— Será? A natureza humana é um abismo. Não existe isso de militar legalista. Têm todos, mais ou menos, a mesma consistênc­ia política, de miolo mole e espinha curvada de tanto obedecer ordens absurdas. E agora, lá no topo, dizem que não aceitam ordens absurdas!

— Te afianço que eles não vão compactuar com esses absurdos antidemocr­áticos.

— Pois, pra mim, o que eles consideram absurda é a democracia.

— A ciência e a razão estão no DNA das Forças Armadas brasileira­s. O primeiro presidente do CNPq, no início dos anos 1950, foi o almirante Álvaro Alberto.

— Ciência pode até ser, mas razão não sei não. Ética muito menos. As contradiçõ­es estão em toda parte. Quatro décadas antes de presidir o CNPq, o Álvaro Alberto participou da repressão violenta dos marinheiro­s amotinados na Revolta da Chibata. — Sério isso?

— Sério e bem doido, pois o líder da revolta, João Cândido, “o almirante negro” de tanta coragem, alguns anos depois aderiu ao integralis­mo. — Não pode ser!

— Verdade.

— Tô vendo aqui no Wikipédia... sim... só que o Álvaro Alberto saiu gravemente ferido naquele episódio. Ele era uma pessoa honrada, de repente estava tentando apaziguar e foi atingido. Era um patriota importante, não só pela criação do CNPq, mas também pelo programa nuclear brasileiro.

— Ao qual cabem muitas críticas. — De todo modo, o que você diz serve pra ilustrar o que eu estava falando no início: a mente é uma democracia de pensamento­s e a todo momento a maioria muda, a pessoa faz uma inflexão na vida. Por isso as pessoas podem mudar, sempre. O fato é que os militares estão numa sinuca de bico histórica, por causa do segredo de polichinel­o do Bozo. — Exato. Sempre souberam das mutretas tenebrosas dele com o Queiroz, mas isso pra eles era “inteligênc­ia”, informação por baixo dos panos, omitida durante a campanha eleitoral inclusive. Eles adoram essa falta de transparên­cia. Mas agora estão publicamen­te associados a essas lambanças todas. Mourão inclusive.

— O jacaré da boca aberta. Esperando o poder cair de maduro no seu colo.

— O próprio.

— Isso sem falar da Covid-19, né? — Isso sem falar nela! Depois que Trump e Bolsonaro conseguira­m realmente fomentar a segunda onda de infecções, estamos entrando na montanha-russa da morte. Saiu na Nature Medicine um artigo mostrando que a imunidade pode diminuir depois de três meses, já pensou? Enquanto não houver 7 bilhões de doses de uma boa vacina, continuare­mos em risco permanente. Ou 14 bilhões, se for preciso reforço. E os militares entrando no Ministério da Saúde só para dar eficiência à contagem de cadáveres. Administra­r a mortandade, etiquetar corpos... E falham até nisso! Como fizeram durante o surto de meningite no início dos anos 1970, abafando em vez de admitir os números. As coisas ainda vão piorar muito antes de melhorar, Sagredo. O bicho vai pegar, a cobra vai fumar. Cloroquina blues. — Acho que você está sendo dramático demais. Os militares já perceberam que escolheram o pior. Vão ficar marcados por isso se deixarem correr frouxo, perdendo o bom nome que já vinham recuperand­o por osmose, simplesmen­te por deixarem o golpismo quieto e por construíre­m estradas. Foram muito bem tratados pelos governos do PT e depois embarcaram na canoa furada da desconstru­ção do Estado, ao preço de muitas boquinhas. Mas com certeza tem gente ali que é muito capaz! Só os melhores conseguem galgar. É um sistema meritocrát­ico. — Mais ou menos. O puxa-saquismo tem importânci­a central. É por isso que eles acatam tudo que o celerado diz. E a questão da boquinha não é acessória. Simplesmen­te eles aderiram, em troca de milhares de cargos comissiona­dos e outras benesses, ao governo mais entreguist­a e lesa-pátria que o Brasil já teve desde dom João 6º.

— Você acha que nos bastidores eles não estão agindo pra defender o país?

— Devem estar, né? Reduzindo danos... pelo menos alguns deles. Ou não... vai ver estão nos cozinhando. Não se esqueça de que muitos militares de alta patente recebem bem acima do teto constituci­onal. Eles perderam toda a moral. Somos governados por um péssimo ex-capitão, que eles mesmos expulsaram. Lembro do grande Salviati Torturra quando se refere ao capanguism­o. Vivemos a República dos Jagunços, do DOI-Codi e dos especialis­tas em covardia e presepada, como foi no Riocentro.

— Tinha me esquecido disso. — Pois é. Como disse um grande mestre de capoeira amigo meu, a facada cada vez mais parece “operação tabajara de paraquedis­tas”. Isso sem falar no sadismo boçal que celebra o AI-5 e os desapareci­mentos. Patriarcad­o, supremacia branca, brutalidad­e policial e aporofobia são a marca da Besta. — Aporoquê?

— Medo de pobre, em grego. — Saquei. Tá mais pra ódio de pobre, né?

— Verdade. E isso rola em todas as classes sociais, inclusive entre os pobres. Um tipo de anticristi­anismo, um “foda-se o outro” coletivo. No jogo de polícia e bandido, só morrem pretos e pretas pobres de todos os lados, inclusive quem só deu azar de estar ali, naquela hora e lugar. O esgarçamen­to dos laços de solidaried­ade num momento de crise é um suicídio evolutivo, estamos involuindo socialment­e.

— Por que você acha que essa loucura de negar o vírus tem tanto apoio? — Em primeiro lugar porque a educação em geral é muito ruim. As professora­s são super mal pagas, as turmas são enormes, lemos muito pouco e vivemos em profundo analfabeti­smo científico. Mas tem também o locus ceruleus.

— Locusquê?

— O locus ceruleus é um grupo de neurônios lá no fundo do cérebro, diretament­e envolvido com a detecção de novidades. Ele tem tudo a ver com o fato de que o cérebro se habitua a tudo, pois essas células deixam de se ativar quando o estímulo se repete. A gente gosta do que é novo, mas logo se habitua. A única exceção é a dor, que nunca leva à habituação. Só que as pessoas só sentem a dor em si, não a dor dos outros. Aí é só um estímulo a mais, e o locus ceruleus se habitua. As pessoas ficaram mais chocadas com as primeiras 10 mil mortes do que com as últimas 40 mil. Por isso mesmo, o prognóstic­o de indignação cívica é improvável.

— Caramba. É isso. Simples assim... — Por isso mesmo, o método de manipulaçã­o preferido dos neofascist­as é falar coisas de alto teor atencional, de alta octanagem emocional, atirando em direções opostas de modo chocante e rápido, deixando todo mundo zonzo. Em inglês isso se chama “gaslightin­g”. No Brazil é o pum distrator do palhaço assassino. — Você tem razão. Está todo mundo abalado, ninguém tá pensando direito. Na democracia da cabeça das pessoas está rolando muita gritaria e pouca ação eficaz.

— Pudera, está tudo errado! Com o fim dessa merreca de R$ 600, o consumo vai afundar de vez, e a crise econômica vai se prolongar sem perspectiv­a de recuperaçã­o no horizonte. E quando mais precisamos de investimen­tos em ciência e tecnologia, realmente capazes de aumentar nossa produtivid­ade e agregar valor à produção, os recursos legalmente estipulado­s para esse fim, como o FNDCT, continuam quase totalmente congelados. Muitos dos pesquisado­res envolvidos na busca de vacinas, tratamento­s e testes são pós-graduandos e pós-doutorando­s sem bolsa. Estão matando a ciência brasileira quando ela é mais necessária. Como aconteceu com George Floyd, a ciência não consegue respirar com os joelhos do bolsonaris­mo no pescoço.

— Por isso mesmo, Simplícia, precisamos reagir e implementa­r um projeto viável de país, com horizontes de semanas, meses e anos. — Concordo, Sagredo, mas hoje, infelizmen­te, caminhamos é para o caos. Muita gente me pergunta se os sonhos das pessoas mudaram nos últimos meses. Ora, é claro que mudaram! Pior governo do mundo na pandemia, mais aumento da letalidade policial contra negras e negros de qualquer idade, mesmo crianças, tiro na cabecinha... mais destruição da Amazônia e dos povos da floresta... que país horrível.

— Mas na última semana a coisa melhorou, admita. O Estado parece ter ressuscita­do. O STF começou o enfrentame­nto efetivo das milícias reais e virtuais, e o Weintraub fugiu pra Gringolând­ia, cometendo crime diplomátic­o. Além disso, novo estudo sobre a dexametaso­na trouxe esperança para os casos graves de Covid. — Isso tudo é perfumaria. O coronavíru­s não está indo embora, está chegando. Já morreram 50 mil pessoas no Brasil e vão morrer muitas mais. Rastreio de infectados é quase inexistent­e no país. Levantar a quarentena agora é como se esconder da explosão da granada durante a contagem regressiva, pra então, já no final, levantar a cabeça e receber os estilhaços na cara. — Realmente, parece que caminhamos para o abate bovinament­e. E pensar que o comando dessa estratégia que mata brasileiro­s por negligênci­a é militar... São gestores incompeten­tes ou genocidas intenciona­is? Será que a motivação é de eugenia? Porque a mortandade é principalm­ente de negras e negros. — É mais uma bomba explodindo no colo da nação, uma bomba gigante, sem precedente­s. A história julgará esses vermes.

— Por que você acha que eles se radicaliza­ram tanto? — Radicaliza­dos eles já eram, mas saíram do armário novamente porque a Comissão da Verdade errou em não investigar os crimes da esquerda. — Mas nesses casos não era violência do Estado.

—Mesmo assim, seri amais equânime. Baixava abola e eles teriam que se desculpar de verdade, olhando nas câmeras de TV e pedindo perdão pelas monstruosi­dades que cometeram. Isso nunca aconteceu do jeito que precisaria ter acontecido pra seguirmos adiante, Sagredo. O autoritari­smo e a violência de quem ilegalment­e vende segurança, luze gás nas favelas tem suas raízes na impenitênc­ia dos torturador­es. Ép oris soque oB ozo sempre lembrado Ustra.Foic agadada esquerda não passar tu doem pratos limpos. Até porque foram poucos casos, em comparação coma multidão que a ditadura matou.

—Poi seu achoqueéb em mais complicado doque isso. Tema ver coma Intentona Comunista de 1935 e com a submissão aos Estados Unidos como parceiro estratégic­o dominante. — Cooperação caracu. Eles entram co macara e nós ...

— Simplícia, esse teu lirismo de botequim me faz lembrar do Maiakóvski: “Por enquanto há escória de sobra /otempoéesc asso/ mãosà obra ”. — Lindo esse poema comunista. “Primeiro é preciso transforma­r avida/ para cantá-la em seguida .” — Viva o Lula.

— Fala sério. Lula nunca foi comunista. A democracia da minha mente acabou de votar por mais uma breja. —Pois se ele estivesse aqui, eu beijava amã odele. As duas. É que nem “A Lista de Schindler.” Por mais que você critique o cara por ter jogado o jogo sujo, na hora Hele salvou vidas. Muitas. Oque importa, no final das contas,éo que você faz.

— Mas roubou.

— Não está provado, mas vamos lá, suponhamos que sim. Roubar quase todos roubam, há 500 anos. Se compararmo­s o governo militar com os governos democrátic­os que vieram depois, não dá pra saber quem ganhou o campeonato da corrupção. Mas só o Lula conseguiu fazer algo de verdade pelo povo. Hospitais, escolas, pontos de cultura, institutos federais, universida­des. Aumento real do salario mínimo.

— Apenas distribuiu as migalhas do capitalism­o.

— Pra você ver: essas migalhas fizeram uma diferença enorme! Vá perguntar pra juventude pujante do Nordeste se avida não melhorou naquela época? Vá a Juazeiro, vá a Petrolina.

— Mas ele está vacilando de não entrar na frente ampla.

— Sim, verdade. Mas é compreensí­vel. Nem Fernando Henrique, nem Mar inanem Ciro apoiaram oH ad dadquan doera a hora deformara frente ampla pra impedir o desastre. — Mas um erro não justifica o outro. — Calma que o Lula vai chegar, ele é imprescind­ível. Amenteéu ma democracia de ondas elétricas que pensa medes pensam muitas vezes antes de decidir. É só uma pausa dramática. E ele tem suas razões. Sem autocrític­a dos golpistas da Dilma, sem autocrític­a da loucura do mercado de apostar num psicopata declarado, fica difícil se aproximar.

— E a autocrític­a do PT?

— Vem acontecend­o.

— Eu não vi nada contundent­e. — Calma. Está na hora de tudo isso se juntar e acontecer ao mesmo tempo. Programa mínimo: saúde, educação, ambiente, ciência, cultura, esporte e direitos humanos. Disso aí quase ninguém discorda. O que agente pode discuti ré qual papel cabe ao Estado e qual cabe ao setor privado. Precisamos de um projeto de país que una todas e todos pelo saber e amor no coração, da esquerda à direita, comprometi­dos com o queéfund amental: avida.

— Sei não, fico com o Milton Santos, a Eliane Brume o Guilherme Boulos nessa aí ... tá faltando enfrentar de verdade o problema do racismo. O Estado brasileiro é uma máquina de prejudicar e assassinar pretas e pretos, moendo na base, na infância ena adolescênc­ia, os descendent­es dos escravos que construíra­m a nação. Enquanto isso não for reparado, curado com cuidado, não teremos paz.

— Verdade.

— E tem também o que o Ailton Krenak falou: não projetamos nada que preste até hoje, e deu no que deu... Agora é olhar o carro capotar e ver se, depois de tudo, encontramo­s na balbúrdia de nossos pensamento­s um outro jeito de estar no mundo. — Saideira?

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Filipe Berndt/Divulgação ‘Cama’ (2015), óleo sobre tela da artista plástica Ana Elisa Egreja
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