Folha de S.Paulo

Uma luz na política

Mandatos coletivos pelo país afrontam machismo e racismo no Parlamento

- Marilene Felinto Escritora e tradutora, autora de ‘As Mulheres de Tijucopapo’ | dom. Jorge Coli, Marilene Felinto, Angela Alonso, Bernardo Carvalho

Amais nova forma de participaç­ão política no Parlamento brasileiro ousa introduzir nomes tambémn ova tosàpauta:c ode putada (e não deputada ), mandata( e não mandato ), coletivida­de, ativismo, pluriparti­darismo e/ ou apartidari­smo, antirracis­mo, anticapita­lismo, antifascis­mo, diversidad­e, horizontal­idade (ausência de hierarquia), feminismo, transvesti­gênere (termo amplo, somatória de percepções identitári­as do universo trans).

A novidade, introduzid­a na eleição de 2018, são os mandatos coletivos que conseguira­m eleger seus representa­ntes nas Assembleia­s Legislativ­as de São Paulo (Bancada Ativista) e Pernambuco (Juntas). Há iniciativa­s do tipo também na Câmara dos Vereadores de Alto Paraíso (GO) e em Minas Gerais, onde o coletivo Muitas criou a “Gabinetona”, atuação conjunta de quatro parlamenta­res nas três instâncias do Legislativ­o.

A Bancada Ativista é composta por nove integrante­s —sete mulheres (uma trans negra, duas negras, três brancas e uma indígena) e dois homens (um negro e um branco). A Juntas tem cinco mulheres em seu quadro, sendo duas negras.

Sem reconhecim­ento na legislação eleitoral, esses grupos têm como porta-voz oficial apessoa cujo nome foi votado nas urnas na eleição. Em São Paulo, Mônica Seixas (PSOL), jornalista; em Pernambuco, Jô Cavalcanti (PSOL), vendedora ambulante e sindicalis­ta.

Pois essas “mandatas” coletivas, se não fazem ainda a necessária revolução anticapita­lista dentro do sistema político-partidário apodrecido, são talvez um passo para o futuro da efetiva representa­tividade chamada democrátic­a.

Se alguma mudança vier nesse campo, será somente quando os espaços de poder forem ocupados por gente negra, indígena, transvesti­gênere, gay, lésbica, não binária, anarquista, socialista, partidária, apartidári­a etc., tudo aquilo que bata de frente com o Parlamento heteronorm­ativo branco de direita liberal, arcaico e truculento.

No quesito diversidad­e, aliás, justiça seja feita ao PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). Não sou filiada ao PS OLn emane n humo utro,masépreci sore conhecer o esforço desse partido para incluir em seus quadros diversidad­e de gênero, de raça, de classe, de orientação sexual, tema pouco importante em outros grupos de esquerda.

Exemplo notório disso é estarem soba legendado PSOL os três únicos representa­ntes trans no Parlamento

nacional: Erica Malunguinh­o, deputada estadual por São Paulo, eleita em 2018; Erika Hilton, codeputada da Bancada Ativista, e Robeyoncé Lima, também codeputada pela Juntas.

Mas é claro que, em suas respectiva­s casas legislativ­as, as bancadas coletivas vão abrindo caminho a tapa, como quem tira leite de pedra.

Abalam a estrutura estofada das poltronas em que se acomoda desde sempre a velharia política viciada em legislar em interesse próprio e para a manutenção do “CIStema” (termo dos coletivos, em que “cis” indica privilegia­r o sexo biológico para identifica­ção de gênero, desconside­rando a autopercep­ção na orientação sexual de um indivíduo).

As mandatas enfrentam todo tipo de resistênci­a e preconceit­o: somente a representa­nte oficial tem direito ao microfone, a assento nas comissões, ao trânsito pelo plenário da casa. Para não falar dos casos explícitos de racismo, misoginia, homofobia e transfobia de que são vítimas.

“Nossa chegada ao Parlamento paulista chocou, e eles estavam preocupado­s como seria a participaç­ão e atuação desses corpos dentro da Assembleia”, disse recentemen­te Erika Hilton ao jornal Brasil de Fato. “[...] Em um ano, a relação não melhorou, ela ficou blasé. Eles fingem que nos toleram e fingimos que não nos importamos com tudo que eles têm feito.”

A despeito do clima inóspito, as bancadas vêm trabalhand­o duro. Em tomadas de decisão sempre consensuad­as entre todos os membros dos grupos, atuam no Parlamento e nas ruas, protocolam projetos com foco na alteração das condições de vida dos excluídos.

Na página do Facebook da Juntas, por exemplo, chama a atenção um vídeo em que diversos coletivos populares (na voz de mulheres negras e jovens) denunciam as condições do sistema prisional em Pernambuco. Ora, quem, neste país, se interessa pela vida dos presos?

Nas ações da Bancada Ativista, por sua vez, destaque para o papel aguerrido da mandata na oposição à PEC 18/2019, que alterou a Previdênci­a dos servidores estaduais em fevereiro deste ano, roubando-lhes direitos adquiridos.

A hierarquia vigente nos mandatos coletivos é apenas a da ordem alfabética dos nomes dos membros. Se isso ainda não significa “poder para o povo preto”, “poder para o povo excluído”, pode ser uma fresta que se abre na parede grosseira da política brasileira.

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Pois essas “mandatas” coletivas, se não fazem ainda a revolução dentro do sistema político apodrecido, são talvez um passo para o futuro da efetiva representa­tividade

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