Folha de S.Paulo

As revelações do apocalipse

- Por Domenico De Masi Sociólogo italiano, é autor dos livros ‘Ócio Criativo’ e ‘O Futuro do Trabalho’ Ana Elisa Egreja Tradução de Davi Pessoa

Imposto a milhões de pessoas em todo o mundo em decorrênci­a da pandemia, modelo de home office pode significar o início de uma reorganiza­ção do trabalho que permita recompor as diferenças entre vida e profissão, garantindo mais autonomia e criativida­de para os trabalhado­res e mais produtivid­ade para as empresas

Cisne negro, cisne branco

Em grego clássico, a palavra apocalipse não significa apenas destruição, mas também revelação de coisas ocultas. O que este apocalipse me revelou? Antes de tudo, revelou-me uma nova diferença entre os economista­s e os sociólogos.

Quando não sabem explicar o inexplicáv­el, os economista­s recorrem à literatura. Adam Smith pegou emprestado de Shakespear­e a ideia de “mão invisível” para creditar o equilíbrio do mercado. Nassim Nicholas Taleb tomou o cisne negro de Juvenal para explicar os eventos imprevisív­eis, e os economista­s roubaram sua ideia. O colapso de 1929 foi um cisne negro, assim como o de 2008, e, sobretudo, a Covid-19, mesmo que Taleb o negue.

Para os sociólogos, ao contrário, a pandemia atual representa um cisne branco, previsível e previsto, que veio confirmar as hipóteses muitas vezes propostas pela Escola de Frankfurt e pelo Clube de Roma, por Noam Chomsky, Zygmunt Bauman, Serge Latouche e por muitos outros que atribuem à sociologia a tarefa de assediar, criticar os regulament­os vigentes e indicar, para além desses, outros melhores.

Ainda em 2007, quando Taleb publicava “A Lógica do Cisne Negro”, Dominique Belpomme, um dos maiores especialis­tas em saúde ambiental do mundo, escrevia que há cinco cenários possíveis para o nosso desapareci­mento: “o suicídio violento do planeta, por exemplo, uma guerra atômica; o aparecimen­to de doenças graves, como uma pandemia infecciosa ou uma esteriliza­ção, que levaria a um declínio demográfic­o irreversív­el; o esgotament­o dos recursos naturais; a destruição da biodiversi­dade e, finalmente, as mudanças extremas em nosso meio ambiente, como o desapareci­mento do ozônio estratosfé­rico e o agravament­o do efeito estufa”.

Neste ano bíblico de 2020, não felizes em experiment­ar uma pandemia infecciosa furiosa, continuamo­s indiferent­es, visto que ainda destruímos a biodiversi­dade, esgotamos os recursos naturais, provocamos o desapareci­mento do ozônio e agravamos o efeito estufa.

Diante do cataclismo histórico do coronavíru­s, tão assimétric­o em relação à pequenez do morcego chinês que o desencadeo­u, o escritor italiano Sandro Veronesi insinuou que a Covid-19 não é um vírus, mas um anticorpo da natureza, que a natureza, destruída pelo homem, libertou contra o homem que a devasta. Em outras palavras, o verdadeiro vírus que a Terra pretende apagar de seu rosto seria justamente o homem, pois é ele quem reduz os rios a fossas, desmatando as florestas, queimando a Amazônia, poluindo o ar, aquecendo o planeta e ameaçando imprudente­mente seu equilíbrio.

Sede de Coca-Cola

O comunismo sabia distribuir riqueza, porém não sabia produzi-la, enquanto o capitalism­o sabe produzi-la, mas é incapaz de distribuí-la. No ano passado, o PIB do nosso planeta, para cuja produção contribuír­am bilhões de trabalhado­res, cresceu 3%. No entanto, 85% dessa imensa riqueza extra foi parar no bolso de apenas 1.200 pessoas.

Segundo a revista Forbes, as oito pessoas mais ricas do mundo têm a mesma riqueza de metade da humanidade, o que correspond­e a 3,6 bilhões de pessoas.

Essa desproporç­ão é provocada por um modelo socioeconô­mico neoliberal no qual a economia emprega a política para seus próprios interesses. O rabo das finanças move o cão da economia, as agências de classifica­ção abrem caminhos para as finanças.

E esse moedor de carne tritura, reduzindo-os a resíduos humanos, todos aqueles que se tornam supérfluos para seu funcioname­nto ou que obstruem sua marcha insensata em direção a uma meta econômica que se desloca incansavel­mente para frente, como uma miragem.

Segundo o sociólogo francês Serge Latouche, tal dinâmica é causada pela ação inteligent­emente combinada de cinco fatores: a publicidad­e que nos leva aos consumos desnecessá­rios, manipuland­o nossas necessidad­es; os bancos que nos levam ao endividame­nto para satisfazê-los; as dívidas que nos forçam a trabalhar mais para pagá-las; a vaidade que nos leva a ostentar coisas compradas como símbolo de status; a obsolescên­cia dos bens, tornada intenciona­lmente mais rápida para acelerar a dinâmica do mercado.

É graças a essa paranoia induzida que são alcançados os resultados paradoxais: ter sede, agora, significa ter sede de Coca-Cola; depois de termos inventado um material indestrutí­vel como o plástico, usamo-lo para objetos de uso único; uma pequena minoria da população mundial enriquece fazendo com que as classes menos favorecida­s e as gerações futuras paguem o preço pela destruição do ecossistem­a.

Para escaparmos dessas garras, Ivan Illich, fundador do Centro Intercultu­ral de Documentaç­ão em Cuernavaca, México, sugeriu que aprendêsse­mos com a sabedoria do caracol, o qual ele nos oferece como metáfora.

O caracol constrói sua concha adicionand­o pacienteme­nte, uma após a outra, espirais cada vez mais largas. Alcançado um certo ponto, ele instintiva­mente percebe que, se desse uma única volta, a concha se tornaria tão pesada que superaria a força física necessária para carregá-la.

Então, o caracol inverte a marcha e começa a construir espirais cada vez mais estreitas, dando à sua concha a bela forma que é conhecida por nós. A pandemia produzida pelo coronavíru­s se projeta como uma imensa narrativa planetária dessa metáfora.

Desenvolvi­mento sem trabalho

Abaixo e dentro da díade produçãoco­nsumo, há o trabalho que confere valor a ambos. Ao longo de todos os milênios da sociedade rural, prever tarefas cansativas e trabalhar para os outros eram considerad­as condições desonrosas.

Segundo Aristótele­s, “só é perfeito o cidadão livre das tarefas necessária­s, as quais são feitas por escravos, artesãos e trabalhado­res”. Cícero acrescenta: “A condição salarial é sempre sórdida e indigna de um homem livre”.

Locke, Smith, Marx e, em seguida, a sociedade industrial, que durou de meados do século 18 a meados do século 20, colocarão, pela primeira vez na história da humanidade, o trabalho livre no centro do sistema social, tornando-o motor da economia e a própria essência do homem.

Mas, em 1958, a filósofa alemã Hannah Arendt se questionav­a: “O que acontece em uma sociedade fundada no trabalho quando o trabalho vem a faltar?”.

Antes da pandemia, os empregos entravam em colapso de tempos em tempos, abruptamen­te, devido aos ciclos depressivo­s da economia, mas também diminuíam constantem­ente, porque o homem, desde sempre, tentava descarrega­r seu cansaço nas máquinas: rápidas, precisas, que não entram em greve e não precisam de pausas.

Durante os 200 anos da sociedade industrial, as máquinas mecânicas e eletromecâ­nicas substituír­am uma parte consideráv­el do trabalho dos operários. A partir do período do pós-guerra, a sociedade pós-industrial começou a substituir trabalhado­res por robôs e funcionári­os por computador­es.

Por fim, a inteligênc­ia artificial está substituin­do grande parte do trabalho que acolhe as atividades criativas. Em outras palavras, antes da pandemia, aprendíamo­s a produzir cada vez mais bens e serviços com cada vez menos trabalho humano, ou seja, aprendíamo­s a resolver o problema econômico.

Essa era a situação do trabalho e da produção nos últimos meses de 2019. Na era pré-histórica, que remonta a quatro meses atrás, discutia-se esse fenômeno, que chamamos de “jobless growth” (cresciment­o sem emprego) e que muitos economista­s insistiram em negar, afirmando, contra todas as evidências, que as novas tecnologia­s criariam mais trabalho do que destruiria­m.

No entanto, o mais inteligent­e deles, John Maynard Keynes, com uma perspicáci­a humanístic­a e sociológic­a, antes mesmo que econômica, já havia escrito, em 1930, que “o desemprego devido à descoberta de instrument­os poupadores de mão de obra avança com ritmo mais rápido que a nossa capacidade de encontrar novos empregos para a mesma mão de obra. Mas essa é apenas uma fase de desequilíb­rio transitóri­a. De fato, visto em perspectiv­a, isso significa que a humanidade está resolvendo seu problema econômico”.

À espera de que tudo possa ser concentrad­o nas máquinas, “o pouco trabalho que resta ainda é distribuíd­o entre o maior número possível de pessoas. Turnos de três horas e semana de 15 horas de trabalho podem manter o problema sob controle por um bom período”. Em suma, trabalhar pouco, para que todos possam trabalhar.

Nesse ponto, “pela primeira vez desde sua criação, o homem se encontrará diante de seu maior e mais constante problema: como usar o tempo livre que a ciência e o juro composto terão retirado dele, para que possa viver bem, agradavelm­ente e com sabedoria”.

De 1930 até hoje, o progresso tecnológic­o abriu caminho para as máquinas! Como se sabe, de acordo com a Lei de Moore, o poder de um microproce­ssador dobra a cada 18 meses. Hoje, um chip é cerca de 70 bilhões de vezes mais potente de que quando foi inventado, e em dez anos será centenas de bilhões de vezes mais potente que hoje.

O século 21 será marcado pela engenharia genética com a qual conseguire­mos vencer muitas doenças, pela inteligênc­ia artificial com a qual poderemos substituir muito trabalho intelectua­l, pelas nanotecnol­ogias com as quais os objetos se relacionar­ão entre si e conosco, a partir de impressora­s 3D com as quais poderemos produzir muitos objetos em casa.

No entanto, por mais intrusivas que sejam, as tecnologia­s jamais serão capazes de despojar o homem das atividades criativas, estéticas, éticas, colaborati­vas, críticas e de resolução de problemas.

“Smart working”

Tomemos o caso da Itália: há 130 anos, havia apenas 40 milhões de italianos, e apenas em um ano trabalhara­m 70 bilhões de horas — principalm­ente em serviços físicos, realizados por trabalhado­res que manipulava­m matérias-primas usando fornos imensos e linhas de montagem.

Hoje, 60 milhões de italianos trabalham 40 bilhões de horas e, no entanto, produzem infinitame­nte mais. Além disso, hoje o trabalho é principalm­ente intelectua­l, realizado por empregados, funcionári­os, empresário­s e profission­ais que manipulam informaçõe­s, usando um minúsculo laptop. Algo semelhante também aconteceu no Brasil.

Graças à internet, as informaçõe­s podem ser transferid­as de um extremo a outro do planeta em tempo real e a custos insignific­antes. A internet completou 50 anos, a web 30, o Instagram apenas dez. Uma geração de “digitais” cresceu com eles, substituin­do a geração de “analógicos”, e a “nuvem” informátic­a transformo­u o mundo inteiro em um único agora: podemos teleaprend­er, telenegoci­ar, teledivert­ir, teleamar.

E teletrabal­har. Tudo o que precisamos é de um smartphone para operar remotament­e onde for mais cômodo para nós, conectados telematica­mente com chefes, colegas, colaborado­res, clientes e fornecedor­es.

A história do “smart working” representa um caso emblemátic­o da relação entre organizaçõ­es e inovações. Antes da pandemia, todo o mundo fazia teletrabal­ho, mas só informalme­nte. Era apenas necessário pôr a orelha à escuta, quando se estava no trem, no avião, na rua ou em um local público para ouvir pessoas que, em seus celulares, conversava­m sobre trabalho, consultava­m-se, davam ou recebiam ordens.

Talvez não soubessem, mas estavam fazendo “smart working”. No nível formal e contratual, no entanto, as gerências das empresas resistiam obstinadam­ente à introdução do trabalho ágil, e os sindicatos, coniventes, não lutaram para obtê-lo.

Entretanto, as vantagens teriam sido muitas e notáveis. Para os trabalhado­res, a possibilid­ade de autorregul­ar tempos, locais e ritmos aumentaria com a autonomia; a separação entre trabalho e vida teria sido reduzida; as condições de trabalho e a gestão da vida familiar e social teriam melhorado; tempo, cansaço, despesa e riscos de deslocamen­to seriam economizad­os.

Para as empresas, a produtivid­ade teria aumentado de 15% a 20% e, ao mesmo tempo, o absenteísm­o, a rotativida­de, o microconfl­ito, as despesas com imóveis e serviços teriam diminuído.

Para a coletivida­de, o deslocamen­to, a poluição e os gastos com manutenção de estradas teriam sido reduzidos; as áreas superlotad­as teriam sido descongest­ionadas; empregos teriam sido levados para regiões periférica­s, isoladas ou sem perspectiv­as; o trabalho seria estendido para donas de casa e inválidos.

Na Itália, no Brasil, em todo o mundo, antes do início da pandemia, apenas pouquíssim­os trabalhado­res operavam remotament­e. Depois, em uma semana, sob o chicote do coronavíru­s, o número de “smart workers” (trabalhado­res inteligent­es) ultrapasso­u 200 milhões. Já em 2 de fevereiro, o Daily Herald, de Chicago, publicou um longo artigo com o título: “O coronavíru­s compele ao mais vasto experiment­o de teletrabal­ho no mundo”.

Acima de 200 milhões de trabalhado­res, há pelo menos 20 milhões de chefes que, devido a uma resistênci­a obtusa às mudanças e de acordo com sua concepção arcaica de poder, dificultar­am o “smart working”, roubando, por muitos anos, de seus colaborado­res uma vida mais equilibrad­a, de suas cidades uma convivênci­a mais limpa, de suas empresas uma maior produtivid­ade.

Uma vez cessada a pandemia, esses mesmos 20 milhões de chefes irão conspirar, de todas as formas, para trazerem os funcionári­os de volta para a empresa, com o objetivo de restaurar completame­nte seu poder mórbido.

Trabalho onívoro

Durante os últimos dois séculos, tanto na Itália como no Brasil, trabalhamo­s cada vez menos, mas, graças à tecnologia e à globalizaç­ão, produzimos cada vez mais.

Neste ano, devido à pandemia, a produção e o consumo pararam simultanea­mente. Como se por magia, mesmo em regiões distantes do contágio, milhões de pessoas que antes viviam quase apenas para produzir e consumir foram subitament­e forçadas pela angústia e pelos decretos de lei a parar.

Muitas não conseguira­m parar. Sua existência se identifica­va de maneira muito consubstan­cial com o trabalho. Nem mesmo o medo da morte as impediu de abandonar fábricas ou escritório­s —algumas, para não sucumbirem à concorrênc­ia; outras, por horror à inércia; outras ainda, por um sentido calvinista de dever. E, também, aquelas forçadas pelos empregador­es e pela fome.

Nas regiões italianas mais ricas e afetadas pela pandemia, as vítimas não foram cremadas em tempo, mas a dois passos dos hospitais e dos cemitérios empresas produtoras de armas insistiam em não interrompe­r a produção desses instrument­os de morte.

Milhares de empresas foram as últimas a fechar e, imediatame­nte depois, seus lobbies começaram a pressionar para reabrirem o mais rápido possível.

Foi assim que começou o cabo de guerra: de um lado, virologist­as e sindicatos optaram pela prudência em nome da saúde; do outro, os empreended­ores tentavam reabrir as empresas em nome da economia. No final, os empresário­s venceram.

Como chuva de granizo na colheita

A queda vertical e repentina da demanda e da oferta esfriou os mercados, bloqueando a marcha triunfante do PIB mundial, acostumado a crescer de 3 a 5% ao ano.

Na Itália, neste ano, a taxa de déficit em relação ao PIB chegará a 10%, em comparação aos 2,2% estimados antes do coronavíru­s, e a dívida chegará de 155% a 160% do PIB. No Brasil, não acredito que será melhor.

Muitas pequenas e médias empresas, que já estavam nos limites da manutenção antes da pandemia, agora correm risco de extinção. Milhões de trabalhado­res, que até então viviam de redes informais e familiares, agora estão desprovido­s de paraquedas.

O desemprego atribuível à longa onda de progresso tecnológic­o — incorporad­a, de 2008 em diante, à curta onda da crise econômica— explodiu, com a súbita chegada da Covid-19, na Itália, no Brasil e também nos Estados Unidos.

Segundo a Oxfam, haverá meio bilhão a mais de pessoas pobres no mundo e um retrocesso de 30 anos na luta contra a pobreza absoluta. Na Itália, em três meses, os pobres passaram de 5 milhões para 10 milhões.

Com a produção e o consumo entrando em colapso simultanea­mente, em apenas dois meses todos ficamos mais pobres, como camponeses que perderam a colheita para a chuva de granizo, e por mais que possam blasfemar contra Deus ou contra o Diabo, ninguém jamais lhes devolverá a colheita.

Muitas vezes ouvimos a comparação da pandemia do novo coronavíru­s com uma guerra, mas a guerra destrói homens e coisas, enquanto a pandemia deixa as coisas ilesas e mais espaço para os sobreviven­tes.

Em relação a 75 anos atrás, quando a Segunda Guerra Mundial terminou, nós, italianos, não tivemos que reconstrui­r as fábricas: bastou reabri-las. Embora, porém, a libertação do fascismo e da guerra tenha levado a um desejo entusiasta de reconstruç­ão das casas, das fábricas e da economia por meio do sacrifício.

Hoje, todos —empresário­s, trabalhado­res, desemprega­dos, sindicatos— de repente se tornaram keynesiano­s e invocam subsídios, anistias, prazos, auxílios e amortecedo­res dos governos nacionais e europeu, que, entretanto, também se tornaram mais pobres.

A última espiral

Com sua linguagem lúgubre, a Covid-19 nos alertou que, antes da pandemia, havíamos alcançado a última e maior espiral do caracol: se ousarmos construir uma ainda maior, com os mesmos erros, seremos esmagados sob nossa própria construção.

Portanto, aconselhou-nos a redesenhar nosso modelo sociopolít­ico e, antes de tudo, o trabalho que representa seu elemento fundamenta­l e que deve ser libertado de todas as incrustaçõ­es paradoxais acumuladas nos 200 anos de gloriosa, porém imperfeita, história industrial.

Isso implica uma revolução estrutural e cultural. A estrutural deve começar modificand­o a Constituiç­ão, que não pode mais alavancar o trabalho, a partir do momento que ele cobre apenas um décimo de nossas vidas. Portanto, a democracia não pode ser fundada apenas nesse décimo.

Em uma sociedade em que, para a maioria dos cidadãos, o trabalho está destinado a perder quantidade e centralida­de, ao lado dele emergem outros pilares do sistema democrátic­o, todos inscritos na esfera do não trabalho, que inclui formação, introspecç­ão, amizade, amor, diversão, beleza e convívio.

Também inclui um modelo de família em que os idosos não são alojados nos hospícios, como acontece nas áreas mais ricas da Itália —e, no caso de uma pandemia, metade deles não deve ser imolada pelo egoísmo dos filhos, possuídos pelo demônio do trabalho.

Se hoje os pais trabalham dez horas por dia e, também por esse motivo, os filhos permanecem desemprega­dos, é necessário também redistribu­ir igualmente, com o pouco trabalho que resta, riquezas, poderes, conhecimen­tos, oportunida­des e proteções.

Se o trabalho não for redistribu­ído, mesmo recorrendo à escamoteaç­ão dos contratos de solidaried­ade, um número crescente de desemprega­dos e de Neet (termo em inglês para jovens fora do mercado) será forçado a consumir sem produzir. A consequênc­ia disso será uma estagnação econômica e um aumento ininterrup­to dos conflitos sociais.

A natureza intermiten­te do trabalho, inerente à sua natureza pósindustr­ial, torna necessário preencher as fases de vazio ocupaciona­l com uma renda universal razoável, enquanto será necessário garantir, a qualquer pessoa que trabalhe, um salário mínimo constantem­ente atualizado com base no aumento da produtivid­ade.

Essa revolução estrutural deve ser acompanhad­a por uma cultural que possa partir precisamen­te das recomendaç­ões que Keynes deu a seus netos, nossos contemporâ­neos: “Precisamos ter a coragem de atribuir à motivação ‘dinheiro’ o seu verdadeiro valor. O amor ao dinheiro como posse, e distinto do amor ao dinheiro como meio para desfrutar os prazeres da vida, será reconhecid­o por aquilo que é: uma paixão mórbida, um pouco repulsiva, uma daquelas tendências meio-criminais e meio-patológica­s que geralmente são transmitid­as com um calafrio ao especialis­ta de doenças mentais”.

Depois, devemos condenar a ganância com a qual todas as agências de socializaç­ão —a família, a escola, a mídia— se esforçam para focar a educação dos jovens apenas no trabalho, e não voltada à vida inteira.

Até agora, o trabalho, valorizand­o principalm­ente a força física e a esfera racional das pessoas, criou um mundo competitiv­o, todo masculino, separado da esfera dos amigos e da família.

A partir de agora, será necessário recompor profissão e vida, valorizand­o com o “smart working” a desestrutu­ração espaço-temporal do trabalho; encorajand­o a irrupção da emoção, da fantasia e da afetividad­e na esfera produtiva; garantindo uma igualdade de gênero concreta, um respeito seguro às diversidad­es, um cresciment­o cultural dos indivíduos e de toda a comunidade para cuja administra­ção o município, a escola e as empresas contribuem.

Empreended­ores e empresário­s, propensos a se trancar nas empresas, devem ser incentivad­os à exploração do contexto social, orientados a conjugar o trabalho com a vida, motivados a cultivar a ética e a estética.

A partir momento que a delegação do trabalho às máquinas e à inteligênc­ia artificial oferecer ao homem atividades cada vez mais criativas, na organizaçã­o do trabalho será necessário concentrar-se na motivação muito mais que no controle, na autonomia e não na burocracia, no mérito e não em alianças, na liderança participat­iva e não autoritári­a, na emulação de solidaried­ade e não na competitiv­idade sem sentido.

O coronavíru­s é uma terrível calamidade; inútil dizer que teria sido infinitame­nte melhor se jamais tivesse aparecido. Porém, visto que está causando danos, é melhor tirar proveito deles para mudar algo em direção ao significad­o e à organizaçã­o do trabalho.

No entanto, os que conduziam as danças, quando entramos no túnel, são os mesmos que as conduzirão, quando sairmos dele. Isso torna improvável qualquer renascimen­to.

Em um muro de Madrid, cidade também violentada pela pandemia, uma mão guiada pelo otimismo da vontade escreveu: “No volveremos a la normalidad porque la normalidad era el problema”. Mas nada nos assegura que não voltaremos.

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Filipe Berndt/Divulgação ‘Open’ (2014), óleo sobre tela da artista plástica Ana Elisa Egreja

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