Folha de S.Paulo

Ditadura formou geração de militares que hoje povoam governo federal

Uma das bases de sustentaçã­o do atual governo, fardados trazem do regime autoritári­o a mentalidad­e de que as Forças Armadas são importante­s para a união nacional

- Igor Gielow

A ascensão do capitão reformado do Exército Jair Bolsonaro ao poder fez brilhar os olhos de uma geração de oficiais-generais brasileiro­s.

Após 33 anos fora do núcleo decisório do país, os fardados enxergaram uma oportunida­de de redenção.

Em aproximaçã­o mediada por generais da reserva que haviam encampado a candidatur­a, houve, depois do primeiro turno, a bênção do AltoComand­o do Exército, principal órgão da estrutura militar brasileira, a Bolsonaro.

O resultado, passado um ano e meio de governo de fato, é a maior crise existencia­l recente das Forças Armadas.

“Há uma confusão institucio­nal. Chama a atenção o grande número de militares no governo”, diz o primeiro general da reserva que deixou o primeiro escalão, Carlos Alberto dos Santos Cruz (ex-Secretaria de Governo).

Em uma “live” do Instituto Brasiliens­e de Direito Público no sábado (20), ele classifico­u de desequilib­rado o papel dos militares na política. “Há excesso. Isso começa a deteriorar o comportame­nto.”

Hoje, 10 dos 23 ministros do governo vieram da caserna, incluindo aí o interino da Saúde, general Eduardo Pazuello. A exemplo do sucessor de Santos Cruz, Luiz Eduardo Ramos, Pazuello é da ativa. “Para ir ao governo, todo mundo tem de passar para a reserva”, afirma o ex-ministro.

Ramos prometeu adiantar sua saída do serviço ativo. Mais próximo militar, historicam­ente, de Bolsonaro, ele personific­a um conflito que remonta ao regime de 1964.

A ditadura foi a última de uma série de intervençõ­es militares desde a proclamaçã­o da República, em 1889, um clássico golpe fardado.

A República Velha terminou em 1930 com outro golpe. Os anos de 1945, com o fim do Estado Novo, e 1954, marcado pelo suicídio de Getúlio Vargas, também veriam ações decisivas de alteração do poder civil pelas mãos militares.

Em 1975, o cientista político americano Alfred Stepan (1936-2017), analisou a correlação das Forças Armadas com o poder civil no Brasil.

Ele traça a formação do caráter de tutela que os militares se arrogaram ao longo da história. Mas estabelece limites, lembrando que duas tentativas de golpe (1955 e 1961) que não tiveram apoio legitimado­r de parte expressiva da elite civil fracassara­m.

Essa leitura salvacioni­sta, de união nacional, é visível nas duas notas assinadas pelo ministro da Defesa de Bolsonaro, o general da reserva Fernando Azevedo, acerca do golpe de 1964.

Ali está o resumo do que sua geração acredita: o movimento militar teria sido necessário para deter o alinhament­o do governo de João Goulart (1919-1976) com o então comunismo internacio­nal e teve amplo respaldo interno.

Sendo parte de um processo histórico, o golpe não deveria envergonha­r os militares —torturas e assassinat­os, além das progressiv­as perdas de liberdades civis, são esquecidas na avaliação.

Bolsonaro sempre promoveu a ditadura, enquanto um obscuro deputado, principalm­ente seu caráter repressivo.

No poder, envernizou um pouco o discurso, mas seu instinto provocador de crise entre Poderes constante manteve a tensão alta entre os fardados a seu lado.

Não são poucos: além dos ministros e altos funcionári­os, há hoje 2.900 militares da ativa emprestado­s para funções civis na Esplanada.

A dita ala militar do governo, sempre fraturada, buscou apresentar-se moderada e também moderadora.

Isso teve altos e baixos, dado o embate dela com a ala ideológica representa­da pelos filhos presidenci­ais e seus aliados no governo, mas de forma geral repetiu o formato de pretensa tutela do poder civil pelos militares.

Não deu muito certo na prática, dado o caráter incontrolá­vel de Bolsonaro, mas a crescente ocupação de cargos vitais no Planalto e na Saúde durante a pandemia da Covid-19 mostra um efeito prático da intenção.

Antes da posse de Bolsonaro, o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, disse em uma entrevista à Folha que a vitória do capitão não era a volta dos militares ao poder, embora temesse uma politizaçã­o dos quartéis.

Hoje ela assusta observador­es nem tanto nas Forças, mas sim nas polícias, em especial militares, muitas vezes identifica­das ao bolsonaris­mo.

Isso é uma novidade histórica, dado que nas oportunida­des em que houve conflito envolvendo forças estaduais, como em 1930, 1932 ou 1961, eram os governador­es que retinham o apoio das tropas.

A grande quantidade de questões internas para as Forças é ressaltada por Stepan em seu trabalho. Tendo travado sua última grande guerra regional no Paraguai há 150 anos, desafios externos acabam sendo substituíd­os por tarefas de cunho político.

O grande período de turbulênci­a e tutela de 1945, após a queda de Getúlio Vargas, até o golpe de 1964 viu tal espírito intervenci­onista se expandir até o paroxismo da ditadura.

No primeiro governo militar, do marechal Humberto Castello Branco (1899-1967), foi feita uma reforma buscando normalizar tal agitação.

Foi determinad­o um sistema pelo qual 25% do efetivo de oficiais-generais, em todos os níveis, seria renovado todos os anos.

Na outra ponta, foram tomadas medidas para reduzir a politizaçã­o dos estratos mais baixos da tropa, vistas como vulnerávei­s ao socialismo.

Antes, os fardados já haviam passado pelo processo interno de apagamento da memória da FEB, a Força Expedicion­ária Brasileira que lutou em 1944 e 1945 na Itália.

Quando voltaram ao país, os comandante­s foram espalhados de forma a não constituir um núcleo político: tinham ido lutar contra o nazifascis­mo e voltaram para a ditadura do Estado Novo, que seguia tal orientação. Ainda assim, foi por pressão militar que Vargas deixou o cargo.

A reforma dos anos 1960 veio com dificuldad­e, e trouxe o conflito entre Castello Branco e seu ministro da Guerra, Arthur da Costa e Silva (18991969), e por fim o último se tornou o presidente do AI-5.

Só Castello Branco havia lutado na FEB, entre os presidente­s da ditadura. Costa e Silva, diz Stepan, “era considerad­o simpático aos desejos de um governo mais militante e autoritári­o e de uma posição menos pró-americana e mais nacionalis­ta”.

O ato institucio­nal que recrudesce­u a ditadura, em 1968, foi um divisor de águas. Os militares aferraram-se ao poder de forma definitiva.

É na década de 1970 que se forma o núcleo dos generais de Bolsonaro, ele mesmo um cadete da turma de 1977. O decano deles, Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucio­nal), formou-se na Academia Militar das Agulhas Negras em 1969 e sempre abraçou causas políticas enquanto estava no serviço ativo.

Suas críticas à política indigenist­a do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) lhe custaram o Comando da Amazônia e, em 2011, foi impedido de saudar o golpe de 1964 em sua despedida à reserva.

De forma paradoxal, foi sob Lula (2003-2010) que os militares tiveram um grande ganho do ponto de vista material.

Projetos estratégic­os de armamentos, liderança na Missão de Paz da ONU no Haiti, aumento de verbas e de participaç­ão nas GLOs (operações de garantia da lei e da ordem) marcaram o período.

Os anos Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002) são, por sua vez, lembrados com desprezo pelo oficialato.

Consideram que foram relegados ao segundo plano em suas funções militares, já estando fora da política, e a criação do Ministério da Defesa foi vista como uma subordinaç­ão indesejada ao poder civil.

Sob Dilma Rousseff (PT, 2011-2016), os ruídos políticos cresceram, devido principalm­ente à Comissão da Verdade, que apontou crimes da ditadura, avaliada pela cúpula militar como um tribunal de um lado só.

Com o impeachmen­t da petista e a chegada de Michel Temer (MDB) para seus dois anos de poder em 2016, o caminho para a volta ao protagonis­mo foi aberto.

A Defesa foi entregue em 2018 para um general de quatro estrelas, acabando com o princípio simbólico da pasta, e o general Sérgio Etchegoyen (GSI) assumiu papel vital no aconselham­ento do governo.

O sequestro do estamento militar pela ritualísti­ca do governo Bolsonaro desandou nas ameaças veladas de uso das Forças contra outros Poderes pelo presidente.

Em uma “live” do grupo Personalid­ades em Foco, em 20 de maio, Heleno rechaçou golpismo.

“Não passa [pela cabeça] golpe, intervençã­o. [Devo isso aos] nossos instrutore­s, vacinados por toda aquela trajetória de militares se intrometen­do de uma forma pouco aconselháv­el, mas muitas vezes necessária, na política.”

A frase é reveladora pelo seu aposto: “muitas vezes necessária”. Heleno é visto como o mais duro dos generais que migraram para o Planalto com Bolsonaro, mas sua visão não é hegemônica.

Coube ao general Azevedo fazer o papel de pivô moderador da turma fardada, com um alinhament­o grande com seu ex-subordinad­o Walter Braga Netto, o general que comanda a Casa Civil. Ramos, que também serviu sob o comando do atual ministro, já esteve mais próximo dele.

O agravament­o da crise tríplice pela qual passa o Brasil, com a Covid-19 se somando a uma recessão à vista e à tormenta política, tem aumentado os ruídos entre o serviço ativo e os militares de terno.

Stepan aponta que isso ocorria já no auge da ditadura. Se estivesse vivo, poderia fazer associaçõe­s à repulsa dos comandante­s pelo ativismo sindicalis­ta que era preconizad­o por Bolsonaro, um militar indiscipli­nado.

Nas três décadas fora do poder, as Forças “se afastaram das crises políticas, impeachmen­ts, casos de corrupção” e têm “credibilid­ade alta” entre a população, diz Santos Cruz.

O general, que passou pelos dois lados do balcão, resume o momento militar atual: “Situação complexa”.

A leitura salvacioni­sta, de união nacional, é visível nas duas notas assinadas pelo ministro da Defesa de Bolsonaro, o general da reserva Fernando Azevedo, acerca do golpe de 1964

 ?? Audazes Paraquedis­tas no Facebook ?? 1 2 3 Mourão 1 , Bolsonaro 2 e Heleno 3 no curso de paraquedis­mo, provavelme­nte no fim de 1979
Audazes Paraquedis­tas no Facebook 1 2 3 Mourão 1 , Bolsonaro 2 e Heleno 3 no curso de paraquedis­mo, provavelme­nte no fim de 1979

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil