Folha de S.Paulo

Dissimulad­a, ditadura militar criou miragem de separação de Poderes

Regime manteve Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal abertos e tolerou oposição, mas cassou deputados e magistrado­s

- Fábio Zanini

Amáquina política que sustentou a ditadura brasileira não foi apenas autoritári­a e repressora. Foi também dissimulad­a.

Durante seus 21 anos, o regime militar cultivou uma miragem democrátic­a.

Ao contrário do Chile, não concentrou poder em um único general, mas o dividiu entre cinco presidente­s (além de uma breve junta militar).

Diferentem­ente da Argentina, manteve o Congresso aberto por praticamen­te todo o período e tolerou a existência de uma oposição formal.

“Foi uma ditadura em condomínio. Mas era ditadura do mesmo jeito”, diz o historiado­r Boris Fausto, estudioso do período militar.

“Nunca houve eleição. O Alto Comando do Exército discutia, brigava e votava. Fazia as vezes de povo”, prossegue.

Na teoria, havia respeito a um dos princípios basilares da democracia, o da separação de Poderes. Mas era apenas um verniz, diz o professor, porque o Executivo era um Poder armado, e portanto, superior aos demais.

“Havia separação de Poderes com subordinaç­ão ao Executivo. Forte subordinaç­ão.”

Não foram poucas as vezes em que a condição de primus inter pares do Executivo se manifestou, entre 1964 e 1985.

Seu instrument­o principal foram os Atos Institucio­nais (AIs), dando formatação jurídica ao regime. Houve 17.

A interferên­cia sobre o Legislativ­o não tardou, começando já no décimo dia do golpe, 9 de abril de 1964, com o AI-1, que cassou 41 deputados.

Passou pelo AI-5, de 1968, que consolidou a castração do Congresso, e chegou ao Pacote de Abril, de 1977, com a nomeação de senadores “biônicos”, escolhidos em colégio eleitoral controlado pelo Executivo.

Um dos atos institucio­nais que tiveram consequênc­ias mais duradouras para o arcabouço político foi o nº 2, de outubro de 1965, que instituiu o bipartidar­ismo, fixando a Arena (Aliança Renovadora Nacional) como representa­nte do governo e confinando a oposição ao MDB (Movimento Democrátic­o Brasileiro).

“Inicialmen­te, a suposição dos militares era a de que estabelece­r uma oposição consentida, sem elementos mais radicais como os comunistas, a tornaria mais maleável, mais controláve­l. Esse ambiente gerou, ao menos no princípio, uma certa imagem positiva no exterior, que interessav­a ao novo regime”, diz Fausto.

Mas a manobra se relevaria um tiro no pé a partir de meados dos anos 1970, quando o MDB crescia e se consolidav­a como uma força opositora.

Figuras importante­s do regime, como o general Golbery do Couto e Silva, acabariam por considerar que o bipartidar­ismo tinha sido um erro.

“O modelo de dois partidos unificou a oposição, ali cabiam de liberais a conservado­res”, afirma o historiado­r.

Isso levou o regime a autorizar novas legendas, entre elas o PT, no fim dos anos 1970, como uma estratégia para tentar fragmentar a oposição.

Deputado estadual e senador pelo MDB do Rio Grande do Sul durante a ditadura, Pedro Simon afirma que seu partido “tinha de tudo”. “Tinha até gente de mentirinha, cara que era fechado com a ditadura”.

Ele lembra que havia duras e frequentes discussões sobre até que ponto era o caso de participar do jogo político em condições farsescas. “Valia a pena? Era a pergunta que o povão fazia pra nós”, afirma.

Segundo Simon, o que mais dividia o partido era a maneira de fazer essa oposição consentida. “Luta armada, a maioria era contra, não apenas porque tinha medo, mas porque não havia chance de sucesso. Tudo no país era da Arena. A igreja, as instâncias políticas, tudo.”

Sua posição, afirma, sempre foi a de aproveitar os espaços disponívei­s para pressionar o regime a ceder em quatro pontos fundamenta­is: eleições diretas, Constituin­te, fim da tortura e liberdade de imprensa. “Eu defendia resistir até o último guichê disponível”, diz.

Foi com essa atitude de enfrentar o regime por dentro, lembra o ex-senador, que cresceu a figura de Ulysses Guimarães, principal expoente do MDB durante praticamen­te todo o período autoritári­o.

“O Ulysses foi a grande personalid­ade da história do Brasil naquele momento. Bateu na mesa, resistiu. Seu único erro foi não ter assumido a Presidênci­a com a morte do Tancredo [Neves], ter deixado para o [José] Sarney. Deveria ter assumido e convocado eleições diretas.”

A chegada de Simon ao Senado em 1978, eleito democratic­amente, ocorreu quase simultanea­mente à nomeação dos colegas biônicos.

“O Pacote de Abril foi o último bafo da ditadura. Foi uma desgraça. Mas o povo reagiu do nosso lado, foi uma coisa fantástica”, lembra.

O Judiciário não sofreu menos, sobretudo o Supremo.

O mesmo AI-2 que instituiu o bipartidar­ismo inflou o STF de 11 para 16 membros, com os 5 extras escolhidos a dedo pelo regime. A ideia era diluir vozes opositoras.

Não satisfeito­s, os militares, já anabolizad­os pelo AI-5, cassaram três ministros em 1969, que considerav­am de esquerda: Vitor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva.

Outros dois, em protesto, saíram por conta própria: Gonçalves de Oliveira e Lafayette de Andrada.

Com a corte já “sanitizada” aos olhos do regime, as cinco vagas abertas não foram preenchida­s, e o número de 11 ministros foi restabelec­ido, tamanho que perdura até hoje.

Como instância de controle constituci­onal de um sistema que não respeitava direitos fundamenta­is, e com a ameaça de cassação de ministros sempre por perto, o STF teve um papel secundário durante a ditadura, muito distante do estrelato dos dias de hoje.

Isso gerava grande frustração nos membros mais independen­tes da corte, como ficou evidente em um episódio teatral ocorrido em 1971.

Inconforma­do com a decisão do STF de considerar constituci­onal a censura prévia, o ministro Adauto Lúcio Cardoso, que havia sido voto vencido, levantou-se no meio da sessão, pendurou sua toga na cadeira e abandonou o plenário do tribunal. Em seguida, requereu sua aposentado­ria.

O gesto causou comoção na imprensa, algo incomum para uma corte que tinha a discrição como marca.

“Naquela época, o poder estava realmente concentrad­o no governo militar. O STF tinha suas competênci­as totalmente podadas. Era uma situação de humilhação, mais do que de conflito”, diz o exministro do STF Francisco Rezek, nomeado duas vezes para a corte, a primeira delas na reta final do regime, em 1983.

Segundo Rezek, o Judiciário só teve algum grau de independên­cia entre 1964 e 1968 e após o fim do AI-5, em 1979.

“Por cima da Constituiç­ão, cavalgava o AI-5. Com a edição deste ato, o Brasil passou a conviver com uma ordem institucio­nal paralela, que neutraliza­va por completo as garantias individuai­s”, diz.

O ato fechou o Congresso por quase um ano, cassou autoridade­s, endureceu a censura, abriu as portas para a repressão violenta e suspendeu o habeas corpus para acusações de cunho político.

Tudo, relembra o ex-ministro, era visto sob a ótica da segurança nacional, o que limitava em muito os direitos individuai­s.

“A temática da segurança nacional era interpreta­da do modo mais extensivo possível pelo regime. Isso levou o Aliomar Baleeiro [presidente do STF entre 1971 e 1973] a dizer que não dava mais para respirar diante da superinfla­ção do conceito”, afirma Rezek.

Num discurso famoso, Baleeiro reclamou que até batom de moça e cigarro de maconha eram “segurança nacional”.

A superemend­a constituci­onal de 1969, tão ampla que muitos a consideram uma nova Constituiç­ão, incorporou os princípios do AI-5 à Carta que existia desde 1967.

Uma rápida olhada em seu capítulo sobre direitos e garantias individuai­s mostra como tais conceitos, na realidade, não significav­am muita coisa na prática.

O artigo 153 da Carta, por exemplo, fazia uma longa defesa da livre manifestaç­ão de pensamento e de convicção política ou filosófica, mas incluía uma ressalva que na prática anulava tudo. “Não serão toleradas a subversão da ordem e as publicaçõe­s e exterioriz­ações contrárias à moral e aos bons costumes”, dizia o texto.

O artigo seguinte, o 154, era ainda mais direto. “O abuso de direito individual ou político, com o propósito de subversão do regime democrátic­o ou de corrupção, importará a suspensão daqueles direitos de dois a dez anos”.

Com o fim do AI-5, diz Rezek, o STF teve mais liberdade para julgar e passou a ser refúgio para opositores que queriam contestar pontos do regime.

“A oposição percebeu esse novo momento e passou a reverencia­r o STF. Recorriam com alguma frequência, muito como se faz hoje”.

O restabelec­imento pleno do sistema de freios e contrapeso­s representa­do pela separação de Poderes veio apenas com o término da ditadura, em 1985, o que foi consolidad­o pela Constituiç­ão de 1988.

Só então o alicerce democrátic­o foi refeito, apesar do que tentam fazer crer atualmente os apologista­s daquele período.

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Jornal do Senado Tanques em Brasília no dia 1º de abril de 1964

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