Folha de S.Paulo

Regime agigantou as empreiteir­as e foi rico em escândalos financeiro­s

Imagem de que período militar foi mais honesto se deveu a falta de transparên­cia e fragilidad­e de órgãos de controle

- Felipe Bächtold

“Onegócioé lucrativo sob qualquer aspecto: a Odebrecht pode cobrir todos os seus gastos e exigir também adicionais. Quanto mais cara a construção, maiores os rendimento­s para os acionistas.”

A afirmação pode soar familiar ao noticiário recente do país, mas estampava as páginas da Folha no longínquo ano de 1978, ainda no penúltimo dos governos do regime militar.

À época, o jornal repercutia reportagem da revista alemã Der Spiegel sobre supostas irregulari­dades em um acordo firmado entre Brasil e Alemanha que viabilizou a construção das usinas nucleares de Angra. A publicação europeia questionav­a ligações de ministros com as empresas contratada­s, atrasos das obras e o encarecime­nto do projeto.

Aliados do então presidente Ernesto Geisel repudiavam o teor das acusações da revista. E, assim como aconteceri­a 36 anos mais tarde no âmbito da Operação Lava Jato, o principal nome da empreiteir­a foi convocado para depor em uma CPI: Norberto Odebrecht, fundador da construtor­a, falou aos parlamenta­res em abril de 1979.

A comissão parlamenta­r, criada por causa da reportagem, ouviu outras dezenas de testemunha­s, mas teve escassas consequênc­ias.

Se hoje o mantra de simpatizan­tes do antigo regime dos generais é o de que, em que pese o autoritari­smo, não havia corrupção na época, os arquivos do período e os relatos da imprensa mostram uma série de episódios polêmicos envolvendo altos funcionári­os e até agitação política provocada por revelações que chegavam a público.

Sobretudo nos anos finais do regime, o discurso anticorrup­ção foi encampado por opositores na esteira de casos como o Lutfalla, de suspeitas na concessão de empréstimo­s à família da mulher do ex-governador Paulo Maluf, e o Delfin, sobre o abatimento de dívidas de uma financeira. Até o uso da expressão “mar de lama”, concebida na Presidênci­a de Getúlio Vargas, nos anos 1950, foi reciclado.

O próprio Geisel se mostrava reservadam­ente crítico do ambiente que o circundava. “Só num país como o Brasil na situação atual eu poderia chegar à Presidênci­a”, disse, antes de assumir o cargo, segundo conta o livro “A Ditadura Derrotada”, do jornalista Elio Gaspari. “Como é que se chega ao meu nome? Ora, porque fulano é cretino, sicrano é burro, beltrano é safado! Isso é jeito?”

Dez anos antes da CPI sobre Angra, houve a medida que talvez seja o elo mais significat­ivo do período com os tempos da Lava Jato.

O governo do presidente Arthur da Costa e Silva decidiu restringir a contrataçã­o pública de construtor­as estrangeir­as, que tradiciona­lmente tocavam grandes projetos pelo país até então, como forma de estimular o capital nacional.

A década seguinte e o avanço econômico do chamado “milagre brasileiro” seriam marcados pelas chamadas obras faraônicas, como a rodovia Transamazô­nica e a hidrelétri­ca de Tucuruí.

Sem a concorrênc­ia externa, empresas nacionais encontrara­m espaço para ampliar suas operações. A Odebrecht, antes uma empresa de projetos mais modestos e regionais, ganhou projeção nacional. Consolidar­am suas posições de grandes conglomera­dos a Andrade Gutierrez e a Camargo Corrêa, todas hoje com confissões de pagamento de propina em obras públicas.

A expansão do papel do Estado na economia na época, que inclui a criação de estatais e de fundos públicos, também foi uma das caracterís­ticas daquele período.

“O processo de corrupção de empreiteir­os junto ao Estado é anterior [ao regime]. Mas durante a ditadura isso se consolida e se maximiza de uma maneira radical”, diz o professor de história Pedro Henrique Campos, da Universida­de Federal Rural do Rio. Ele pesquisou em tese de doutorado a relação entre as empreiteir­as e a ditadura e escreveu um livro a respeito, “Estranhas Catedrais”.

Campos lista na obra casos de oficiais militares que foram nomeados para grandes companhias do país, em uma aproximaçã­o do empresaria­do com o regime.

O professor cita como um dos fatores para um “cenário ideal para práticas corépoca ruptas na época” a ampliação dos fundos públicos e o aparelhame­nto empresaria­l do Estado brasileiro.

A liberação de recursos do BNDES, que virou tema de debates nas campanhas presidenci­ais deste século, também despontou em um episódio polêmico do regime dos fardados.

Um dos nomes mais influentes do período, o general Golbery do Couto e Silva, foi criticado por pedir financiame­nto ao banco, à época chamado de BNDE, para a multinacio­nal Dow Chemical, cuja filial brasileira ele chefiou enquanto esteve fora do governo. Na ocasião do lobby, porém, Golbery já atuava como conselheir­o de Geisel, de quem seria chefe da Casa Civil.

Golbery também chegou a ser mencionado em um dos principais escândalos financeiro­s da ditadura, o caso Coroa-Brastel.

Curiosamen­te, o imbróglio teve anos depois uma de suas sentenças expedidas por uma das estrelas da Lava Jato, o juiz fluminense Marcelo Bretas.

Era 1998, quando o magistrado, iniciante na carreira, condenou a oito anos de prisão o empresário Assis Paim Cunha, pivô de uma manobra financeira que respingou em um dos mais conhecidos ministros do regime militar, Delfim Netto.

Delfim e o ex-ministro da Fazenda Ernane Galvêas foram denunciado­s sob acusação de desvio de recursos públicos ao autorizar às pressas liberação de empréstimo da Caixa ao empresário dono do grupo varejista e financeiro Coroa-Brastel em 1981, de valor equivalent­e na época a US$ 25 milhões.

O pano de fundo do repasse, segundo a acusação do Ministério Público à época, era uma operação de socorro a uma corretora influente quebrada, a Laureano. O grupo Coroa-Brastel foi liquidado em 1983, deixando 34 mil pequenos investidor­es lesados por causa de títulos emitidos sem lastro (suporte financeiro para cobrir um eventual resgate).

Paim Cunha morreu em 2008, aos 80 anos, e afirmou até o fim da vida que foi levado a entrar no negócio porque havia interesse do general Golbery na salvação da corretora Laureano.

Já após o fim do regime, em 1989, a Câmara dos Deputados negou autorizaçã­o para que o Supremo Tribunal Federal processass­e Delfim _na o Congresso tinha essa prerrogati­va em denúncias contra parlamenta­res. O exministro sempre afirmou que não cometeu irregulari­dades e que não houve participaç­ão de Golbery no empréstimo.

Se episódios assim já causaram repercussã­o apesar da limitada liberdade política e de expressão da época, há ainda outros relatos controvert­idos que só recentemen­te vieram a público por causa da liberação de arquivos sobre o regime.

Em 2018, um professor da Universida­de Federal de São Carlos (SP), João Roberto Martins Filho, divulgou pesquisa na qual mostrou que a ditadura atuou para abafar uma investigaç­ão de corrupção na compra de fragatas do Reino Unido nos anos 1970. As conclusões se basearam em papéis confidenci­ais históricos do governo britânico.

Os documentos mostraram que, em 1978, o Reino Unido estava disposto a investigar denúncia de superfatur­amento na compra de equipament­os para a construção de navios vendidos ao Brasil e sugeriu o pagamento de indenizaçã­o. “É evidente que eles não gostariam que mandássemo­s um time de investigad­ores e não iriam colaborar com um, se ele fosse”, dizia relatório da diplomacia britânica.

A despeito de todo esse histórico, alguns fatores podem ter contribuíd­o para que ainda mais casos de corrupção não tenham vindo à tona e para a difusão da imagem de administra­ção “honesta” hoje alardeada por apoiadores do antigo regime.

O fim do autoritari­smo e a Constituiç­ão de 1988 garantiram uma série de mecanismos de controle e de fiscalizaç­ão da sociedade sobre variadas instâncias de governo.

O maior exemplo disso é o Ministério Público, hoje, ao lado da Polícia Federal, principal ator em grandes investigaç­ões pelo país, que teve sua autonomia garantida na Carta promulgada naquele ano.

Anteriorme­nte, sem poder de apuração, a instituiçã­o trabalhava atrelada aos governos. Não havia atuação institucio­nalizada para áreas como improbidad­e administra­tiva e defesa do patrimônio público.

No plano federal, até 1988, a situação soa hoje inusitada: o Ministério Público Federal tinha entre suas atribuiçõe­s funções hoje desempenha­das pela Advocacia-Geral da União, de defesa pública.

Atualmente corriqueir­as, as operações da Polícia Federal só se tornaram parte da rotina em meados dos anos 2000, com a ampliação dos quadros e o aparelhame­nto da corporação. Em 2001, foi criada também a Controlado­ria-Geral da União.

A evolução tecnológic­a garantiu ainda ferramenta­s de transparên­cia, como as publicaçõe­s de dados governamen­tais e facilidade­s na apuração de delitos financeiro­s, como o cruzamento de informaçõe­s em bancos de dados e a ampliação da cooperação internacio­nal em casos de recursos mantidos no exterior.

Os crimes financeiro­s, aliás, um dos delitos mais visados por operações como a Lava Jato, tiveram um marco com a lei criminaliz­ando a lavagem de dinheiro, em 1998.

O sucesso da investigaç­ão iniciada no Paraná deve muito a outra lei, ainda mais recente, de 2013, que regulament­ou colaboraçõ­es premiadas, além de tipificar o crime de organizaçã­o criminosa.

“Hoje com a transparên­cia e as investigaç­ões, se tem mais noção do tamanho do problema [da corrupção]. Mas o problema já existia, sem a menor sombra de dúvida. Havia grandes escândalos na época e eram abafados. A imprensa não podia publicar. Era bem diferente a situação”, diz o procurador de Justiça aposentado Ricardo Prado, de São Paulo, que preside a associação Ministério Público Democrátic­o.

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Folhapress Obras da ponte Rio-Niterói em 1971

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