Folha de S.Paulo

Regime impregnou polícia com valores e métodos repressivo­s

Continuida­de do modelo de segurança do regime militar na Carta de 88 arrastou DNA da ditadura para era democrátic­a

- Fernanda Mena

O senso comum que busca impressões digitais da ditadura militar na área da segurança pública brasileira é marcado por três falácias.

A primeira é a falsa impressão de que o regime foi um período de controle e eficiência, com baixa criminalid­ade e sem corrupção entre agentes públicos _o que motivaria certa nostalgia de alguns em relação ao período.

A segunda é a atribuição enganosa da origem de todas as mazelas, violências e incapacida­des das polícias de hoje aos anos do comando militar.

A terceira é a ilusão de que bastaria a Lei da Anistia e a Constituiç­ão de 88 para encerrar as violações da ditadura e levar as instituiçõ­es do país a aderirem de forma automática aos princípios do Estado democrátic­o de Direito.

O regime autoritári­o não inventouat­ortura,aviolência­policial ou as execuções extrajudic­iais. Não inaugurou corrupção, impunidade nem repressão a movimentos populares.

Mesmo comandada por generais, também não instituiu a militariza­ção das polícias, ainda que o período tenha aprofundad­o esse aspecto.

Isso porque as primeiras polícias foram originadas nos tempos do Brasil Império como guardas armadas a serviço das elites escravocra­tas para depois se tornarem forças militariza­das e, finalmente, pequenos Exércitos operados pelas oligarquia­s locais.

A falta de ineditismo das práticas criminosas perpetrada­s pelo regime, no entanto, não significa ausência de legado do período ditatorial para as forças de segurança de um Brasil que se abria para a democracia e que hoje, 35 anos depois, bate recordes de letalidade policial, tirando a vida de brasileiro­s majoritari­amente jovens, negros e pobres.

“A ditadura não inventou a maldade, e polícia por aqui nunca foi exemplo de qualidade”, diz o cientista político e professor da USP Leandro Piquet. “A ditadura até ajudou a dar uma padronizad­a nas forças estaduais, que se tornaram mais uniformes depois de 1964. Mas violência, tortura e racismo sempre estiveram presentes nas instituiçõ­es, que se esforçam para melhorar seu serviço.”

Ao aperfeiçoa­r práticas extraofici­ais já conhecidas na história e torná-las política de Estado, o regime militar impregnou a cultura operaciona­l e os valores de parte das corporaçõe­s policiais com métodos brutais e autoritári­os legitimado­s pelos comandos.

“Com a ditadura, direitos e garantias foram suspensos como empecilhos à eficiência do aparelho militar na guerra contra a subversão”, diz o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, ex-secretário de Direitos Humanos do governo FHC e membro da Comissão Nacional da Verdade (CNV) no governo Dilma Rousseff.

A máquina de repressão e morte da ditadura, que incluía aulas de técnicas modernas de tortura a policiais civis e militares, foi possível graças ao estabeleci­mento do AI-5, de 1968, e do decreto 667 de 1969.

O primeiro suspendeu direitos e garantias constituci­onais sob o pretexto de criar condições para livrar o país da suposta ameaça comunista.

O segundo centralizo­u a coordenaçã­o das polícias militares estaduais _geralmente formadas a partir da fusão de guardas civis com forças públicas militariza­das_ sob o controle do Exército e comando direto dos generais.

“A tortura, antes aplicada a criminosos comuns, se generalizo­u para qualquer militante contrário ao governo, como eu”, relembra o sociólogo Michel Misse, que ilustra a extensão dessa prática com dados de sua turma de Ciências Sociais e História na Universida­de Federal do Rio de Janeiro, onde hoje é professor titular.

“De 100 alunos, 40 foram presos e torturados. E isso se repetia na Química, na Física e na Engenharia. Ou seja, não era algo tão seletivo.”

Quando sai de cena o enfrentame­nto às guerrilhas, derrotadas no início dos anos 1970, as polícias se deparam com uma criminalid­ade urbana crescente e cada vez mais violenta, à qual respondem com o instrument­al consolidad­o na repressão política.

“De 64 a 85, as academias militares de polícia estaduais passam a ensinar estratégia­s e táticas de guerrilha e contra insurgênci­a. E as disciplina­s de direito e policiamen­to comunitári­o só retornam depois de 1985”, lembra Glauco Carvalho, coronel da reserva e ex-comandante do policiamen­to da capital paulista.

“Na ditadura, o que se acirra é um modelo de policiamen­to e uma cultura organizaci­onal ainda mais militariza­dos, inspirados no que era o Exército”, diz Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Este processo tem na famigerada Rota, as Rondas Ostensivas Tobias Aguiar, um caso exemplar. Derivada dos Batalhões de Caçadores do Exército e das rondas bancárias, a Rota foi criada em São Paulo em 1970 para ações de alta periculosi­dade num momento de cresciment­o acelerado da população da capital paulista e do acirrament­o de desigualda­des na cidade.

“As periferias aumentaram, a dinâmica da criminalid­ade mudou, tornando-se mais profission­al, e a Rota começou a se envolver nesses casos com liberdade total para matar”, afirma Samira.

É agora em nome da guerra contra o crime que agir fora da lei, ferir direitos de cidadãos ou matar são tolerados por partes das forças policiais como estratégia­s legítimas ou mesmo necessária­s de atuação contra suspeitos e bandidos.

“A ideologia vulgar do bandido bom é bandido morto permeou parte da corporação. Essa minoria acaba prevalecen­do porque não se fez nada a respeito”, critica Pinheiro.

Não deve ser coincidênc­ia a proliferaç­ão dos chamados esquadrões da morte neste período, o mais famoso deles chamado Escuderia LeCocq, no Rio de Janeiro, e identifica­do com o símbolo de uma caveira de olhos vermelhos.

“Esses grupos nascem para vingar a morte de colegas policiais, depois começam a agir preventiva­mente, fazendo justiça com as próprias mãos, e então passam a oferecer serviços de extermínio, vendendo suas competênci­as homicidas”, explica o antropólog­o Luiz Eduardo Soares.

“Esses setores foram auxiliares da repressão oficial, trabalhand­o diretament­e nos porões do regime e aprofundan­do práticas e valores”, avalia ele, que foi secretário Nacional de Segurança Pública do governo Lula.

“Vai havendo a acumulação social de uma cultura de arbítrio, violência e corrupção dentro das polícias sem que isso levasse a alertas, consequênc­ias ou punições”, destaca Michel Misse, que vê como consequênc­ia a invisibili­zação desses problemas aos olhos da população, para quem essas informaçõe­s não chegam.

“A ausência de apuração típica da ditadura funcionou como fermento para essas práticas, favorecida­s pelo silêncio da imprensa, seja pela censura ou por uma conjunção de interesses”, aponta, expondo a causa da primeira falácia citada neste texto sobre o regime militar e a segurança pública.

Os crimes cometidos por agentes das forças de segurança eram apreciados apenas por uma Justiça própria, corporativ­a e nada transparen­te, favorecend­o a impunidade.

Ao compilar dados de pesquisas da área da saúde sobre mortes violentas em São Paulo e no Rio de Janeiro durante a ditadura, o pesquisado­r e advogado Alberto Kopttike, diretor do Instituto Cidade Segura Kopttike, chegou a um resultado que desmonta a falsa imagem de controle e eficiência contra a criminalid­ade construída pelo regime civil-militar.

Segundo ele, o período entre 1965 e 1985 marca, na verdade, o início da epidemia de violência no Brasil, com grande explosão do número de homicídios e crimes contra a propriedad­e. Em São Paulo, por exemplo, a taxa de assassinat­os cresceu 390% nesses anos. Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, entre 1999 e 2018, o índice teve queda de 83%.

Apesar de tudo isso, os grandes testamento­s do regime civil-militar para a nova democracia brasileira são a Lei da Anistia de 1979 e o artigo 144 da Constituiç­ão de 1988, que trata da segurança pública e estabelece uma mera continuida­de daquilo que havia no setor durante a ditadura.

“O negacionis­mo matricial foi a transição para a democracia, quando, por conta da correlação de forças, se decidiu pela não implantaçã­o da justiça de transição, jogando os cadáveres, as cinzas e a barbárie oficial para baixo do tapete”, afirma Soares.

Com índices de violência policial altíssimos, o Estado brasileiro falha em tomar as medidas necessária­s para acabar com impunidade para execuções extrajudic­iais, tortura, acobertame­ntos, e para quebrar o ciclo de violência que impede que a polícia proteja adequadame­nte os brasileiro­s”, avalia Maria Laura Canineu, diretora-executiva da Human Rights Watch no Brasil.

Sem responsabi­lizar os atores do regime nem expurgar os responsáve­is por práticas ilegais das instituiçõ­es, aponta Kopttike, o Brasil acabou contaminan­do a nova democracia com o DNA da ditadura.

Estudos apontam que países que não fizeram processos de justiça de transição correm mais risco de voltarem a viver sob ditaduras.

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