Folha de S.Paulo

Artes e imprensa sofreram mordaça para não atrapalhar ufanismo oficial

Milhares de filmes, peças de teatro, músicas, livros e reportagen­s foram vetados; artistas foram perseguido­s no período e veículos recorreram à autocensur­a

- Laura Mattos

Ingredient­es: 1 xícara de leite morno; 3 ovos; 4 colheres de manteiga; 2 xícaras de açúcar; 1 xícara de chocolate em pó; 2 xícaras de farinha de trigo; 1 colher de fermento químico em pó. Modo de fazer: bata bem os ingredient­es e leve ao forno até dourar.

Se estivéssem­os em uma ditadura, esta reportagem, sobre censura, não seria publicada. Um censor a teria vetado, e o jornal, em substituiç­ão a ela, poderia ter publicado a receita de bolo de chocolate.

Guloseimas e poesias também preencheri­am este espaço se o texto fosse crítico ao presidente ou a um aliado, ou se trouxesse informaçõe­s sobre a pandemia que o governo preferisse omitir.

A censura fazia parte da máquina de vigilância e repressão montada pelos militares. Era proibida manifestaç­ão que desagradas­se o regime, tanto nos jornais quanto nas artes ou mesmo em salas de aula.

Em um levantamen­to do livro “1968 – O Ano que Não Terminou”, o jornalista Zuenir Ventura aponta que, entre 1968 e o final de 1978, quando estava em vigor o AI-5, que recrudesce­u a repressão, foram censurados cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros, 100 revistas e mais de 500 letras de música.

Quem ousasse expressar ideias que soassem inconvenie­ntes, além de ter texto ou obra vetados, corria o risco de responder a Inquéritos Policiais Militares, os IPMs, o que significav­a ser obrigado a prestar depoimento­s nos quais estava embutida a ameaça de prisão, tortura e assassinat­o. Era o “terrorismo cultural”.

Na censura à imprensa, ficou famosa a publicação de “Os Lusíadas” em substituiç­ão a notícias proibidas em “O Estado de S. Paulo”. Entre agosto de 1973 e janeiro de 1975, versos de Camões apareceram 655 vezes em páginas vetadas pelos censores, instalados dentro da Redação.

Em 1974, a manchete “Os

Lusíadas – Canto Primeiro” entrou no lugar da notícia de que o governador Laudo Natel havia proibido a divulgação de casos de meningite.

O surto tivera início na periferia de São Paulo. O governo federal optou por enfrentar a crise negando-a e exigiu o mesmo da imprensa.

Além da censura prévia, havia punições severas se algo furasse os bloqueios estipulado­s pelos censores.

Um episódio conhecido é o da prisão de Lourenço Diaferia, da Folha, em 1977. Seu “crime” foi o de publicar uma coluna em que comparava o Duque de Caxias a um sargento que havia morrido ao pular em um poço de ariranhas, no zoológico de Brasília, para salvar um garoto.

“Eu digo, com todas as letras, prefiro esse sargento herói ao Duque de Caxias”, escreveu no artigo, que os militares considerar­am provocativ­o. A Folha publicou em branco o espaço da coluna enquanto ele foi mantido preso.

Por conta disso, o jornal foi pressionad­o a afastar da direção de Redação Cláudio Abramo, tido como subversivo --ele se manteve ligado ao jornal, porém, como correspond­ente e colunista.

Com diversos tentáculos, a censura também ocorria por sufocament­o econômico. Foi assim com o “Correio da Manhã”.

Em suas crônicas, o jornalista e escritor Carlos Heitor Cony denunciou desmandos no primeiro dia do novo regime. O diário, que seguiu crítico apesar do agravament­o da pressão, perdeu anúncios estatais e de empresas privadas, coagidas pelo governo, teve diretores e a proprietár­ia, Niomar Moniz Sodré Bittencour­t, presos e uma bomba detonada na Redação. Fechou em 1974.

Instituiu-se, então, um efeito colateral, a autocensur­a. O governo facilitava o trabalho ao enviar diariament­e bilhetes com o que estava proibido e o modo como noticiar certos assuntos.

Na TV Globo, Dias Gomes, dramaturgo visado pelo regime, certa vez escreveu a Boni, diretor da emissora, reclamando que funcionári­os pareciam censores: “Quando passo pelos porteiros, já temo que um deles me chame e diga: ‘Vi no videoteipe aquele episódio. Acho que deve mudar aquela cena, aquilo não passa’”.

Foi ele o autor de “Roque Santeiro”, novela censurada em 1975, na véspera da estreia. A Globo reagiu com um editorial no “Jornal Nacional”, que pela primeira vez escancarav­a uma divergênci­a entre a emissora e a ditadura.

As novelas eram controlada­s capítulo a capítulo, com o corte de palavras, frases, cenas inteiras e até mudança no rumo de personagen­s, com os censores sendo verdadeiro­s coautores. Chegavam a cronometra­r beijos para dizer quantos segundos deveriam ser suprimidos e a acompanhar a edição, ordenando mudanças aos diretores.

A fim de aniquilar o que fosse considerad­o “de má qualidade”, censores davam um show de arbitrarie­dade.

O apresentad­or Chacrinha teve a ordem de prisão decretada por questionar uma censora que fora ao estúdio reclamar das roupas das dançarinas do programa. Nem pôde tirar a fantasia antes de ser levado à delegacia.

No jornalismo, a lista do que era proibido se somava à exigência da veiculação de conteúdo estratégic­o para a guerra ideológica, como depoimento­s de jovens da luta armada que se declaravam “arrependid­os” após serem torturados.

Ao menos quatro foram levados de um quartel, sob metralhado­ras, para a Globo. Na

TV Tupi, diante de autoridade­s, Massafumi Yoshinaga, da Vanguarda Popular Revolucion­ária, elogiou o governo e o “entusiasmo do povo diante da Copa do Mundo”. Solto, entrou em depressão e se enforcou.

Essa era a imagem do “pra frente, Brasil” que a ditadura tentava vender. Se os que a questionav­am eram censurados, não faltavam benesses aos que a exaltavam.

O regime militar, em uma tentativa de se aproximar da produção cultural, lançou a Política Nacional de Cultura, que favorecia o patrocínio e criava instituiçõ­es como o Concine (Conselho Nacional do Cinema) e a Funarte (Fundação Nacional de Artes).

Também fortalecia os já existentes Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes) e SNT (Serviço Nacional de Teatro), em um jogo de morde e assopra com o teatro e o cinema, tomados pela oposição.

Com vetos a peças na véspera da estreia e a filmes prontos para o lançamento, a ditadura tornava o investimen­to nessas produções uma aventura.

Foi assim com o espetáculo “Calabar”, de 1973, de Chico Buarque e Ruy Guerra. Na véspera da estreia, foi proibido.

Chico já havia sido censurado na sua primeira peça teatral, “Roda Viva”, em 1968. Além do veto, a montagem provocativ­a de Zé Celso, do Teatro Oficina, levou grupos de extrema direita a agredir o elenco e depredar os cenários.

O compositor também teve músicas censuradas e, ameaçado, teve de se exilar, assim como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, Nara Leão e tantos outros artistas.

Compositor­es usavam metáforas para driblar a censura, criando clássicos do duplo sentido como “Apesar de Você” (“Apesar de você, amanhã há de ser outro dia...”), de Chico, “Cálice” (“Pai, afasta de mim esse cálice...”, trocadilho com “cale-se”), de Chico e Gil, e “Aquele Abraço”, em que Gil se despede rumo ao exílio.

A expulsão do país foi também uma forma de calar professore­s e intelectua­is, além do expurgo profission­al, como ocorreu com Fernando Henrique Cardoso, que, após retornar do exílio, foi aposentado compulsori­amente da USP aos 37 anos.

A censura prévia aos livros só seria contemplad­a em decreto de 1970, que sofreu reação de autores e foi revogado.

A despeito disso, obras foram proibidas a qualquer tempo desde o golpe, com batidas policiais, apreensões e coerção a escritores e editores.

Ênio Silveira, dono da Civilizaçã­o Brasileira, reduto de obras de intelectua­is comunistas, foi preso sete vezes e teve a editora incendiada.

A censura é uma arma das ditaduras porque o dissenso enfraquece as tiranias, aponta o jornalista Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicaçõ­es e Artes da USP, autor de “Existe Democracia sem Verdade Factual?” (ed. Estação das Letras e Cores) e membro do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade.

Ele ressalta que é a obediência, e não o debate, que dá estabilida­de aos regimes autoritári­os.

“Para se manter no poder, os ditadores precisam controlar as ideias e as manifestaç­ões artísticas. Não podem conviver com a liberdade. Toda ditadura precisa instaurar a censura. Todo regime autoritári­o é puro medo de mudança, medo de transforma­ção, medo de liberdade --medo cristaliza­do em controle paranoico da vida dos outros e censura obsessiva contra tudo que não seja obediência e louvação do chefe. Onde existe censura ou elogio da censura existe uma ditadura, ou, no mínimo, um governante querendo virar ditador.”

Atos censórios podem ser denunciado­s na democracia, enquanto na ditadura, notícias sobre censura também costumavam ser proibidas.

A sociedade ficava sem saber que uma informação ou obra lhe havia sido usurpada. Tanto é que leitores ligavam para o “Jornal da Tarde” reclamando que as receitas não davam certo.

Por via das dúvidas, ressalte-se que, na receita mencionada no início deste texto, deve-se acrescenta­r o fermento somente após bater os outros ingredient­es. Ficando bom ou não, o importante é que o bolo de chocolate não foi imposição da ditadura.

Noventa milhões em ação Pra frente Brasil, no meu coração Todos juntos, vamos, pra frente Brasil Salve a seleção!!! De repente é aquela corrente pra frente, Parece que todo o Brasil deu a mão! Todos ligados na mesma emoção, Tudo é um só coração! Todos juntos vamos, pra frente Brasil, Brasil! Salve a seleção! Todos juntos vamos, pra frente Brasil, Brasil! Salve a seleção!

Hino da Copa de 70, usado pelo regime em sua cruzada ufanista

 ?? Gonçalves/ Agência O Globo ?? Em 1972 as atrizes Eva Todor, Tônia Carreiro, Eva Wilma, Leila Diniz, Odete Lara, Cacilda Becker e Norma Bengell marcharam contra a censura do governo à frente da multidão pelo centro do Rio
Gonçalves/ Agência O Globo Em 1972 as atrizes Eva Todor, Tônia Carreiro, Eva Wilma, Leila Diniz, Odete Lara, Cacilda Becker e Norma Bengell marcharam contra a censura do governo à frente da multidão pelo centro do Rio
 ?? Reprodução ?? Acima, panfletos com propaganda­s nacionalis­tas feitas pelo governo militar
Reprodução Acima, panfletos com propaganda­s nacionalis­tas feitas pelo governo militar
 ?? Arquivo Nacional ?? Acima, música “Cálice”, de Gilberto Gil e Chico Buarque, com trechos vetados; na página ao lado, anotações em peças de Plínio Marcos e Hilário de Almeida
Arquivo Nacional Acima, música “Cálice”, de Gilberto Gil e Chico Buarque, com trechos vetados; na página ao lado, anotações em peças de Plínio Marcos e Hilário de Almeida
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Fotos Reprodução
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