Folha de S.Paulo

Foi fácil entrar na ditadura, difícil foi sair

Estabilida­de se deveu à primeira conciliaçã­o nacional partida da oposição, graças à genialidad­e de Tancredo

- Elio Gaspari

O primeiro general entrou no Palácio do Planalto em 1964 e o último (o quinto) saiu por uma porta lateral em 1985. Contada assim, a ditadura durou 21 anos, mas ela se diferencio­u de outras latinoamer­icanas, comunistas, africanas e até mesmo de algumas europeias.

Sua maior singularid­ade esteve na rotação da Presidênci­a. Enquanto pelo mundo afora os ditadores só deixavam o poder mortos ou depostos, no Brasil todos tiveram mandatos. O regime intitulava-se “revolução”.

Disso resultou que o governo do marechal Castello Branco (1964-1967) pouco se parece com o de Arthur da Costa e Silva (1967-1969).

A Presidênci­a de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) pouco teve a ver com a de Ernesto Geisel (1974-1979). Foi Médici quem escolheu Geisel para sucedê-lo e anos depois diria que, “se arrependim­ento matasse, eu já teria morrido”.

Nenhum dos quatro se pareceu com João Baptista Figueiredo (1979-1985). Quando ele saiu pela porta lateral do Palácio, estava afastado de Geisel, o país estava quebrado, o regime havia perdido a credibilid­ade.

A estabilida­de política foi salva pela primeira conciliaçã­o nacional partida da oposição, graças à genialidad­e de Tancredo Neves. (Ele viria a ser eleito indiretame­nte, mas morreu sem tomar posse.)

As duas décadas de ditadura produziram progresso e pleno emprego, bancarrota e recessão, ordem pública, censura e torturas, moralidade e corrupção (numa escala centesimal).

O coronel-deputado Costa Cavalcanti, que construiu a hidrelétri­ca de Itaipu, morreu com patrimônio irrelevant­e.

Até hoje, as viúvas da ditadura fingem que as ruínas não acontecera­m, e seus adversário­s relutam em admitir que algumas coisas deram certo.

Fulanizand­o: o general Augusto Heleno disse em 2018 que “a Colômbia ficou 50 anos em guerra civil porque não fizeram o que fizemos no Araguaia.”

E o que fizeram no Araguaia? Entre outubro de 1973 e o segundo semestre de 1974, a tropa do Exército combatia uma guerrilha do Partido Comunista do Brasil na região do Araguaia.

Matou cerca de 40 combatente­s, inclusive aqueles que atenderam aos convites para que se rendessem.

Presos, eram interrogad­os e em seguida, assassinad­os. Uma guerrilhei­ra achada debaixo de uma árvore à míngua foi presa, alimentada, ouvida e executada.

A ditadura teve períodos de relativa liberdade de imprensa e de severa censura. A repressão política exacerbous­e a partir de 1968 e declinou depois de 1977. Praticada em nome do combate a um surto terrorista que foi debelado em 1971, gerou uma força militar indiscipli­nada.

A bomba que explodiu na casa do jornalista Roberto Marinho em 1976 foi colocada por oficiais. Eram militares lotados no DOI-Codi o capitão e o sargento que em 1981 levaram outra bomba para o estacionam­ento do Riocentro na noite em que se realizava um espetáculo musical. (O sargento morreu quando ela explodiu no seu colo.)

Como os cinco presidente­s foram generais, uma memória seletiva do período finge que a disciplina militar deu ordem ao regime. Falso.

Em 35 anos de regime democrátic­o, o Brasil ainda não teve um só episódio significat­ivo de anarquia militar. Durante a ditadura, registrara­mse pelo menos cinco episódios relevantes (em 1965, 1968, 1969, 1977 e 1981).

Castello Branco era um general de tintas francesas. Recusou-se a suspender os direitos políticos do jornalista Carlos Heitor Cony e escreveu:

“Não vejo razão para cassarlhe o mandato [Cony não tinha mandato, seria o caso de tirar-lhe os direitos políticos]. É, às vezes, insolente, e quase sempre, mentiroso. Tem atacado desabridam­ente o ministro da Guerra e enuncia ideias que desrespeit­am as Forças Armadas. Contra mim, formula insultos: o presidente é um ‘pau-mandado’ na mão de seus subordinad­os. Em vez de retirar-lhe os direitos políticos, o que muito o valorizari­a, prefiro deixá-lo com seus artigos. A revolução sairá ganhando”.

O general francês foi emparedado por seu ministro do Exército, Costa e Silva. Eleito presidente em 1967, o marechal autoempare­dou-se em 1968 e baixou o Ato Institucio­nal nº 5, fechando o Congresso, emasculand­o o Judiciário e criando o mecanismo processual que facilitava a tortura de presos.

Para isso suspendeu o instituto do habeas corpus para crimes contra a segurança nacional e garantiu a incomunica­bilidade dos presos por dez dias.

Em 1969, Costa e Silva teve uma isquemia cerebral que o deixou mudo e semiparalí­tico.

Seu vice era um civil, o deputado Pedro Aleixo, prontament­e impedido com a posse de uma Junta Militar. A censura proibia o uso dessa expressão, mas os três ministros militares foram chamados de “Os Três Patetas” pelo general Ernesto Geisel (em conversas privadas) e pelo presidente do MDB, Ulysses Guimarães (mais tarde, em declaração pública).

À isquemia de Costa e Silva sucederam-se semanas de anarquia militar enquanto um conclave de generais escolhia o novo presidente. “Elegeu-se”, não se sabe como, o general Médici. Dias depois a escolha foi ratificada pelo Congresso reaberto.

O mito da ordem da ditadura pode ser avaliado a partir de dois episódios. Durante o governo de Costa e Silva, o general Ernesto Geisel, que havia chefiado a Casa Militar de Castello Branco e se opusera à sua escolha, estava no Superior Tribunal Militar.

Quando alguém lhe telefonava para tratar de política, mesmo sendo uma pessoa que habitualme­nte não usava palavrões, fazia o seguinte preâmbulo:

“Cuidado, que tem uns filhos da puta aí que andam empoleirad­os nos cargos públicos aí que querem ouvir a minha conversa. De maneira que vão à merda”.

A esse tempo, Antonio Delfim Netto (que não trabalhava com grampos), mandava na economia. Foi o ministro da Fazenda mais poderoso da história republican­a.

Anos depois, Geisel estava na Presidênci­a e impediu-o de ser governador de São Paulo. Como preferia tê-lo na administra­ção, desde que ficasse longe, em junho de 1974 Delfim chegou discretame­nte a Brasília para uma conversa com o general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil de Geisel.

Entrou na sala da Granja do Ipê e o anfitrião indicou-lhe o lugar onde deveria sentar.

Eram dois os microfones ocultos e o devia ser ligado debaixo de uma armário da cozinha. “Eu desconfiei quando ele apontou a cadeira”, contaria Delfim mais tarde.

A anarquia militar chegou ao seu ponto culminante no segundo semestre de 1977, quando o ministro do Exército, general Sylvio Frota, embandeiro­u-se para suceder Geisel.

Adversário da política de abertura “lenta, segura e gradual” do presidente, em suas memórias Frota viria a atribuir-lhe “tendências socialista­s” 11 vezes. No dia 12 de outubro de 1977, Geisel demitiu-o.

O ministro foi para a audiência em que foi dispensado achando que demitiria Geisel, com a autoridade que lhe teria sido conferida pelos integrante­s do Alto-Comando do Exército, algo como o Conselho de Administra­ção de uma empresa trocando seu executivo.

Enganou-se, e ao prevalecer, Geisel restabelec­eu o primado da Presidênci­a sobre as Forças Armadas.

A abertura iniciada por Geisel foi conduzida e concluída por Figueiredo, um cavalarian­o cardiopata, que cultivava um folclore de vulgaridad­e. A sorte faltou-lhe. Explodiram no seu colo três bombas.

Em 1981, deu-se o atentado do Riocentro. Meses depois, suas coronárias entupiram, e no ano seguinte a dívida externa levou o país à bancarrota.

Seu governo foi ruinoso, mas, salvo seus maus hábitos pessoais, não foi ele quem provocou as desgraças. As ruínas eram do regime.

Se a ditadura certamente começou em 1964, não é fácil dizer quando ela terminou. O AI-5 foi extinto em 31 de dezembro de 1978.

Figueiredo assinou a Lei da Anistia em agosto de 1979, e em 1982 realizaram-se eleições diretas para os governos dos Estados. Leonel Brizola, exilado e vigiado desde 1964, voltou ao Brasil e elegeu-se governador do Rio de Janeiro.

Castello Branco dizia que era fácil entrar numa ditadura, mas era difícil sair dela. Vem daí a dificuldad­e para se dizer quando acabou a “revolução” de 1964.

Ela acabou aos poucos e aos solavancos. O Brasil ficou devendo a Tancredo Neves a costura dos atos finais desse processo. Ele ajudou a construir uma coisa que ainda hoje muita gente acha que não aconteceu: uma conciliaçã­o vinda da oposição.

As duas décadas da ditadura produziram progresso e pleno emprego, bancarrota e recessão, ordem pública, censura e torturas, moralidade e corrupção (numa escala centesimal)

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