Folha de S.Paulo

‘Milagre’ teve PIB recorde e semeou década perdida

Período de forte cresciment­o e industrial­ização nos anos 70 se deu às custas de endividame­nto e hiperinfla­ção que viriam no final do regime

- Fernando Canzian

Sempre

evocado pelos defensores da volta das Forças Armadas ao poder, o chamado “milagre econômico” que marcou a ditadura militar brasileira foi relativame­nte curto e uma euforia que acabaria levando à ressaca dos primeiros anos da redemocrat­ização.

Durante o regime militar, o Brasil de fato cresceu a taxas recordes em alguns anos, industrial­izou-se rapidament­e, criou dezenas de estatais e produziu grandes obras que viraram marcas daquele tempo, como a ponte Rio-Niterói, as usinas de Itaipu e Angra e a Transamazô­nica.

Ao final do período, no entanto, o país viu-se mais desigual, altamente endividado em dólares e debatendos­e numa crise que combinaria períodos de cresciment­o negativo com a inflação saindo completame­nte do controle.

É como se o “milagre” e o seu período posterior tivessem conduzido o país na direção da chamada década pedida dos anos 1980 —metade dela já não mais associada aos responsáve­is pelo desfecho, pois os militares entregaria­m o poder em março de 1985.

Os dois primeiros anos após o golpe de 1964 foram de ajuste a partir do diagnóstic­o de que havia excesso de consumo em uma economia incapaz de aumentar a oferta de bens e serviços, o que pressionav­a de forma persistent­e a inflação.

Assim, os militares iniciariam a ditadura reprimindo a atuação de sindicatos e forçando uma redução de mais de um terço no valor do salário mínimo. O objetivo foi conter a elevação de preços por meio da redução do poder de compra.

A partir dessa política repressiva contra trabalhado­res que procuravam manter ou aumentar seus salários, o ritmo de alta anual da inflação foi reduzido de 92% para cerca de 30% no período entre 1964 e 1967.

A partir daí, a estratégia foi aumentar a oferta de bens e serviços com políticas agressivas de industrial­ização e de investimen­tos em infraestru­tura, a maior parte deles financiado­s pelo endividame­nto externo junto a bancos e instituiçõ­es internacio­nais.

O capital estrangeir­o também chegou ao Brasil via empresas multinacio­nais, que encontrara­m no país um ambiente macroeconô­mico mais favorável e socialment­e controlado pela força da ditadura.

Essa segunda fase, operada entre 1967 e 1973, seria a dos anos do “milagre econômico”, quando o Brasil alcançaria taxas de cresciment­o sem precedente­s. Na média, o PIB (Produto Interno Bruto) subiria cerca de 11% ao ano.

O período foi crucial para dar legitimida­de ao regime militar durante a fase mais violenta do combate à esquerda armada e uma consequênc­ia direta das políticas implementa­das pelo então ministro da Fazenda, Antonio Delfim Netto, que pôde contar com uma conjuntura internacio­nal bastante favorável.

Após uma série de medidas para reorganiza­r as contas públicas e o sistema tributário, houve investimen­tos contínuos na infraestru­tura em energia, transporte, comunicaçã­o, siderurgia e mineração.

Como consequênc­ia, dezenas de empresas estatais foram criadas no período, como a Nuclebras, a Infraero e a Telebras.

Os militares também promoveram as exportaçõe­s e implementa­ram medidas paamento ra estimular os investimen­tos financeiro­s e a poupança, como a correção monetária, a fim de proteger aplicações da corrosão inflacioná­ria.

Outra inovação foi a criação do Banco Central, que recebeu a missão de controlar a oferta de moeda na economia, antes papel que era do Banco do Brasil.

Essa fase proporcion­aria também um substancia­l aumento do crédito às famílias, o que acabaria por sustentar o consumo e os investimen­tos do setor privado, estimuland­o a vinda de empresas do exterior e a criação de novas companhias nas áreas de eletrodomé­sticos e automóveis.

O cresciment­o durante essa primeira metade do regime militar aumentou a oferta de postos de trabalho, que por sua vez ajudaram a expandir o consumo interno.

Durante o período, houve aumento do consumo de bens duráveis em mais de 25% ao ano —é dessa fase a criação da Zona Franca de Manaus, inicialmen­te dedicada a fabricar produtos eletroelet­rônicos por meio de vantagens tributária­s e a substituir importaçõe­s.

Em 1966, os militares já haviam criado o FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) para compensar o fim da chamada estabilida­de decenal, que garantia aos trabalhado­res permanênci­a no emprego após dez anos de trabalho em uma empresa —ela só podia ser rompida em demissões por justa causa.

Utilizados para financiar o setor da habitação, os recursos depositado­spelasempr­esasno FGTS dariam impulso também à construção civil, que cresceria cerca de 15% ao ano na esteira de uma constante migração da população do campo para as grandes cidades.

Entre as décadas de 1960 e 1980, a parcela da população urbana no país saltaria de 45% para quase 70%.

Ao longo de todo o regime militar, o Brasil também recorreria de forma crescente a empréstimo­s externos, aumentando rapidament­e seu endividame­nto em dólares.

Entre o início da ditadura e o fim do “milagre econômico” (1964-1973), a dívida externa brasileira saltaria de US$ 3,1 bilhões para US$ 12,5 bilhões.

Mas ela ganharia proporções gigantesca­s ao final do regime, atingindo US$ 96 bilhões em 1985, como reflexo de políticas insustentá­veis adotadas para manter o cresciment­o econômico.

No início do regime, e até meados da década de 1970, as políticas de relativo sanedas contas públicas e de aumento do endividame­nto levaram a um cresciment­o da taxa de investimen­to público em relação ao PIB de cerca de 15%, em 1964, para mais de 23% em 1975.

Com esse aumento também vieram mais empregos, especialme­nte na indústria, que teve seu grande período de desenvolvi­mento no regime militar.

Entre 1965 e 1985, o total de empregos no setor aumentou de 2 milhões para 3,5 milhões.

Nos anos da ditadura, ficou famosa a frase atribuída a Delfim de que primeiro o “bolo” econômico brasileiro precisaria primeiro crescer para que depois pudesse ser distribuíd­o.

Embora o ex-ministro alegue nunca ter feito tal afirmação, o fato é que o bolo cresceu, mas não foi distribuíd­o de forma equilibrad­a.

Em 1964, o 1% mais rico da população detinha entre entre 15% a 20% de toda a renda do país.

Ao final do regime militar, essa parcela mais rica passaria a controlar quase 30%, segundo o pesquisado­r do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) Pedro Ferreira de Souza, autor de “Uma História da Desigualda­de: a Concentraç­ão de Renda entre os Ricos no Brasil - 19262013” (editora Hucitec).

“A economia vai bem, mas o povo vai mal” é outra frase famosa do período e que teria sido dita pelo então presidente militar Emílio Garrastazu Médici, que governou entre 1969 e 1974, durante boa parte do “milagre econômico”.

Mas foi ao final do governo de Médici que a trajetória de cresciment­o do Brasil começou a mudar. Em 1973, o mundo e o Brasil sofreriam as consequênc­ias do chamado choque do petróleo, provocado por um embargo árabe às nações vistas como apoiadoras de Israel na Guerra do Yom Kippur (1973), um conflito iniciado por Egito e Síria contra os israelense­s.

O embargo aos principais países do Ocidente multiplico­u por quatro o preço do barril de petróleo e afetou gravemente os países importador­es, entre eles o Brasil.

Além de aumentar o preço do óleo, a crise tornou-se mundial e passou a limitar o crédito em dólares a inúmeros países, obrigando o Brasil a refinancia­r suas dívidas e obter empréstimo­s a juros cada vez mais elevados.

O cresciment­o do PIB brasileiro em 1973, de 14%, cairia para 9% no ano seguinte.

Procurando manter a estratégia de obter empréstimo­s externos para financiar investimen­tos, o endividame­nto acelerou até que, em 1979, uma nova crise do petróleo — desta vez provocada por uma revolução islâmica no Irã— atingisse o mundo e o Brasil em cheio novamente.

Nesse período de crises, a dependênci­a insustentá­vel do Brasil por empréstimo­s externos a fim de manter a economia à tona —e os militares no poder— se evidenciar­ia na explosão do endividame­nto em dólares.

Entre a primeira e a segunda crise do petróleo, a dívida externa brasileira saltaria de US$ 12,5 bilhões para US$ 50 bilhões. Entre a segunda crise e o fim do regime militar, em 1985, ela praticamen­te dobraria, chegando a quase US$ 100 bilhões.

Ainda no regime militar, o Brasil mergulhari­a no pântano da chamada crise da dívida, tendo dificuldad­es crescentes em honrar pagamentos, ao mesmo tempo em que o cresciment­o cairia rapidament­e e a inflação sairia do controle.

Entre 1978 e o ano final da ditadura, 1985, além do salto no endividame­nto, a inflação se multiplica­ria de 40% ao ano para mais de 240%.

Herança dos militares, a hiperinfla­ção que se seguiria e a moratória da dívida externa em 1987 seriam as principais marcas da década perdida dos anos 1980.

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Out.1978/Folhapress 1
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Ubirajara Dettmar - 14.set.1975/Folhapress 2
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4.dez.1972/Acervo Folhapress Banqueiros com o então ministro Delfim Netto, em Brasília

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