Folha de S.Paulo

Afã de integrar Amazônia levou a desmatamen­to e morte de índios

Regime militar abriu estradas, construiu usinas e estimulou projetos de colonizaçã­o, mas desempenho socioeconô­mico na região foi no geral pífio

- Fabiano Maisonnave

Sob o lema nacionalis­ta de “integrar para não entregar”, a ditadura transformo­u a Amazônia para sempre.

Rasgou a floresta com milhares de quilômetro­s de estrada, construiu hidrelétri­cas e fomentou projetos agropecuár­ios colonizado­res.

No processo, causou a morte de alguns milhares de indígenas e abriu caminho para o desmatamen­to ilegal e desordenad­o que perdura até hoje.

Era a época do “Brasil Potência”, e o regime tinha pressa em avançar sobre o que chamava de deserto verde. Em 1970, foi lançado o Programa de Integração Nacional (PIN), que previa a construção de rodovias e projetos de colonizaçã­o.

A rodovia Transamazô­nica (BR-230) estava no centro do projeto. Em meio a uma forte seca no Nordeste, a geopolític­a militar havia encontrado na obra a solução mágica: “Terras sem homens para homens sem terra”.

Quatro anos mais tarde, o presidente Emilio Médici inaugurava a estrada, com mais de 4.000 km entre Lábrea (AM) e Cabedelo, no litoral da Paraíba. “Conquistar a imensa área verde e construir um grande e vigoroso país”, anunciava a placa comemorati­va.

A Amazônia não era desabitada, mas, para o regime, os “silvícolas”, termo empregado à época, eram mero obstáculo ao progresso. Esse desprezo se traduziu em deslocamen­tos forçados, doenças, confrontos e genocídio.

No caminho da Transamazô­nica, os assurinis, habitantes do Médio Xingu, perderam quase metade da população, tragédia comum a diversas etnias da Amazônia que até então viviam em isolamento.

Essa mistura de colonizaçã­o desordenad­a com atropelo aos povos indígenas se repetiu na construção de outras rodovias. É o caso da BR163 (Cuiabá-Santarém), hoje importante via de escoamento da soja de Mato Grosso, mas também foco de desmatamen­to e garimpo ilegais e que quase levou o povo panará à extinção.

“As compensaçõ­es feitas para as comunidade­s indígenas são ações muito pontuais”, afirma a liderança Zezinho Kaxarari, cujo povo, que vive na divisa entre Rondônia, Acre e Amazonas, sofreu com os impactos da BR-364, no trecho entre Porto Velho (RO) e Rio Branco (AC). “Para os povos indígenas, os danos causados serão para o resto da vida.”

Diversos povos tentaram resistir. Um dos episódios mais violentos ocorreu na construção da BR-174, entre Manaus e Boa Vista, atravessan­do o território waimiri-atroari.

Depoimento­s de sobreviven­tes ao Ministério Público Federal relatam helicópter­os sobrevoand­o aldeias para lançar veneno e bombas, entre outras atrocidade­s. A Comissão Nacional da Verdade estima em 2.600 mortes no confronto. O Exército, porém, nega qualquer ação ilegal.

“Ao contatar povos indígenas isolados, na época chamados pejorativa­mente de ‘arredios’ ou ‘hostis’, a fim de liberar o terreno para obras de construção civil, os agentes do governo provocaram enorme mortalidad­e entre os índios. Essa sequência de mortes deu origem a uma segunda caracterís­tica da ditadura: a ocultação dos dados e dos fatos. Os militares odiavam a palavra ‘genocídio’ e procuravam negá-la a qualquer preço”, diz o jornalista Rubens Valente, autor do livro “Os Fuzis e as Flechas” (Companhia das Letras).

“É preciso reconhecer que essa estratégia de negação teve sucesso, pois entre muitos brasileiro­s a noção de que crimes foram praticados contra indígenas nunca foi devidament­e introjetad­a e explicada. A política do silêncio se estendeu pelas décadas seguintes, pois até hoje as Forças Armadas nunca pediram qualquer tipo de desculpa pelas mortes, doenças, perda dos território­s e outros crimes cometidos contra os indígenas”, diz o colunista do UOL (empresa que tem participaç­ão acionária minoritári­a e indireta da Folha).

As estradas abertas pela ditadura na Amazônia abriram caminho para um processo desordenad­o de ocupação do território por pessoas de outras regiões do país, marcado pela precária regulariza­ção fundiária, pela grilagem e pelo desmatamen­to ilegal.

Esse impulso continua forte. Um levantamen­to recente do MPF mostra que 9 das 10 áreas da Amazônia com maior incidência de desmatamen­to em 2019 estão na área de influência de rodovias construída­s durante o regime militar.

A lista inclui municípios à beira da Transamazô­nica, como Anapu (PA) e Apuí (AM); São Félix do Xingu (PA), sob influência da PA-279; áreas de Rondônia, Acre e Amazonas próximas à BR-364; e Novo Progresso (PA), cidade surgida a partir da construção da BR-163.

Do ponto de vista econômico, o processo de colonizaçã­o impulsado pela ditadura tem sido desigual entre as regiões da Amazônia Legal. Por um lado, a soja gerou riqueza em algumas regiões, principalm­ente em cidades ao norte de Mato Grosso, como Sinop, às margens da BR-163.

Mas a maior parte da floresta derrubada deu mesmo lugar a uma pecuária de baixa produtivid­ade. Segundo levantamen­to do projeto TerraClass, uma parceria entre o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Especiais) e a Embrapa, a Amazônia Legal possuía 12 milhões de hectares de pasto degradado, comparável ao tamanho de três estados do Rio de Janeiro. O cálculo foi feito em 2014.

Para o ecólogo Philip Fearnside, do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), a construção das estradas amazônicas tinha mais cálculo político do que econômico.

“No caso da Transamazô­nica, foram dez dias entre a visita do Médici aos flagelados [pela seca] e o anúncio da estrada. Não houve tempo para nenhum tipo de análise nem nada”, afirma.

“A BR-319 [Manaus-Porto Velho] não tinha nenhum raciocínio econômico. Era tudo paranoia de que a Amazônia seria tomada pela cobiça internacio­nal.”

Ao longo da Transamazô­nica, onde milhares de colonos se desfizeram dos lotes logo nos primeiros anos, os pastos subutiliza­dos ou abandonado­s se perdem de vista.

Centros urbanos sobrevivem de repasses federais e de atividades ilegais, principalm­ente garimpo, extração de madeira e grilagem de terras públicas.

Um deles, Itaituba (PA), se tornou o centro do garimpo ilegal de ouro no Brasil. Essa posição já pertenceu a Serra Pelada, que, no final dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, se tornou a maior mina a céu aberto do mundo.

Em ambos os lugares, a riqueza gerou passivos ambientais, como a contaminaç­ão por mercúrio, sem benefícios socioeconô­micos relevantes.

Curionópol­is (PA), município onde se localiza Serra Pelada, aparece em 3.378º lugar no ranking do Atlas do Desenvolvi­mento Humano, enquanto Itaituba está em 3.291º, em lista com 5.565 municípios.

Todos os 15 piores municípios do ranking, parceria entre o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvi­mento (Pnud) e o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), estão na Amazônia Legal.

Com desenvolvi­mento humano tão baixo, não é surpresa que a importânci­a econômica da Amazônia seja pífia.

Meio século após o lançamento do PIN, a região representa 8,7% do PIB de 2017, o ano mais recente disponível. Em comparação a cidade-região de São Paulo, responde por 24,6% do PIB brasileiro.

Ao contatar povos indígenas isolados, na época chamados pejorativa­mente de ‘arredios’ ou ‘hostis’, a fim de liberar o terreno para obras, os agentes do governo provocaram enorme mortalidad­e entre os índios. Essa sequência de mortes deu origem a uma segunda caracterís­tica da ditadura: a ocultação dos dados e dos fatos. Os militares odiavam a palavra ‘genocídio’ e procuravam negá-la a qualquer preço

Rubens Valente autor do livro “Os Fuzis e “as Flechas”

A BR-319 [ManausPort­o Velho] não tinha nenhum raciocínio econômico. Era tudo paranoia de que a Amazônia seria tomada pela cobiça internacio­nal

Philip Fearnside ecólogo do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia)

 ??  ??
 ?? Folhapress ?? 3
Tratores fazem terraplana­gem em trecho da Rodovia Transamazô­nica
Folhapress 3 Tratores fazem terraplana­gem em trecho da Rodovia Transamazô­nica

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil