Folha de S.Paulo

Movimentos pró-democracia resgatam amarelo como símbolo

Tom foi associado à ditadura militar, simbolizou a campanha das Diretas Já, esteve presente no impeachmen­t de Dilma e foi apropriado por bolsonaris­tas

- Joelmir Tavares

Na bandeira ele representa as riquezas, na ditadura militar serviu para estimular o ufanismo, nas Diretas Já uniformizo­u as ruas no clamor pelo voto direto e, no Brasil de hoje, é disputado por detratores e apoiadores de Jair Bolsonaro.

O amarelo já foi usado e reciclado como símbolo em diferentes contextos da política nacional, ora associado ao establishm­ent, ora à contestaçã­o.

A cor (que, combinada com o verde, é sinônimo de Brasil em qualquer lugar do mundo) está no centro de uma guerra que opõe movimentos da sociedade civil que se manifestam em defesa da democracia e grupos fiéis a Bolsonaro.

Enquanto o segundo grupo sai às ruas de amarelo e exibe discurso de posse sobre a bandeira e o hino nacionais, setores críticos ao governo querem devolver a estes componente­s a condição de bens comuns, que deveriam estar à margem de divergênci­as.

“Quando os bolsonaris­tas se apropriam desses símbolos, conseguem reforçar uma narrativa falsa de que eles são os verdadeiro­s brasileiro­s”, diz o escritor Antonio Prata, um dos organizado­res do Estamos Juntos, manifesto por democracia que soma mais de 283 mil assinatura­s.

O movimento, lançado em maio, adotou o amarelo como cor oficial.

“Temos que fazer esse resgate. Assim como precisamos voltar a abraçar a bandeira e a cantar o nosso hino. Quem disse que o hino é exclusivid­ade do bolsonaris­mo?”, segue Prata, que é colunista da Folha.

A proposta é endossada por membros de torcidas organizada­s de times que, reunidos no movimento Somos Democracia, ganharam espaço nas semanas com protestos autodenomi­nados antifascis­tas.

Danilo Pássaro, líder do grupo, disse em vídeo de convocação para os atos que parte da sociedade criou repulsa ao verde e amarelo “em razão da sua apropriaçã­o por grupos intolerant­es, racistas, fascistas”.

Para entender a recente onda amarelada entre forças de direita, é preciso voltar a 2014, quando eclodiram manifestaç­ões contra Dilma Rousseff (PT), depois transforma­das em passeatas pró-impeachmen­t.

O Vem pra Rua, uma das organizaçõ­es que puxaram os atos, inicialmen­te usaria o laranja, mas teve que trocá-lo, segundo o fundador Rogério Chequer, porque em telas ele poderia se confundir com o vermelho. “No primeiro vídeo que postamos, nos xingaram de petistas”, diz, em alusão ao tom rubro do partido.

“Aí debatemos que a cor deveria ter a ver com a bandeira, com a pátria. Logo, amarelo”, explica. O fato de participan­tes começarem a aparecer vestindo a camiseta da seleção foi coincidênc­ia, afirma Chequer.

“Em 2014 teve Copa do Mundo. Acho que era mais fácil a pessoa ter em casa uma camisa da seleção do que outra roupa da mesma tonalidade”, diz. A moda pegou e depois passou a ser incentivad­a pelos próprios adeptos das marchas anti-PT e pró-Lava Jato.

Embalados pelo coro de “a nossa bandeira jamais será vermelha”, manifestan­tes e organizado­res amarelaram de vez, no sentido cromático. O MBL (Movimento Brasil Livre), outro indutor dos atos contra Dilma, despejou a cor nos materiais de divulgação.

Também era tingido de amarelo o pato inflável instalado nessa época na avenida Paulista como avatar de campanha da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) contra o aumento de impostos.

O contexto ajudou a pavimentar a eleição de Bolsonadiu ro em 2018, já que o presidenci­ável abraçou pautas caras àqueles insatisfei­tos, como o antipetism­o e o combate à corrupção.

Predominan­te ainda hoje nos atos pró-governo, o elemento acompanha Bolsonaro desde a campanha. Era amarela a camiseta usada por ele no instante em que sofreu a facada em Juiz de Fora (MG).

Mas o debate sobre apropriaçã­o e reinvenção da cor é bem mais antigo. Remonta à construção do pavilhão nacional, como explica a historiado­ra e antropólog­a Lilia Schwarcz.

“A cada releitura da bandeira, o centro era alterado, mas as cores se mantinham. Originalme­nte, o amarelo simbolizav­a a casa imperial de Habsburgo-Lorena. Com a Independên­cia, para apagar as casas imperiais, a cor passou a significar as riquezas, o ouro. E esse sentido foi ratificado na República”, diz.

Segundo a professora da USP, os tons oficiais foram evocados em inúmeros outros momentos. Ela cita o Primeiro Reinado (1822-31), com dom Pedro 1° incentivan­do o uso das cores pela população, e o movimento integralis­ta, nos anos 1930, que incorporou o verde e amarelo aos uniformes.

“Mas nada se compara, em termos de escala, ao que foi feito pela ditadura. Aí virou essa patriotada, com a ideia de que este é um país que vai para a frente, a coisa do ame-o ou deixe-o. É típico de governos ditatoriai­s apelar para esse discurso, sequestrar os símbolos pátrios”, afirma.

No caso do regime militar, o “sequestro” avançou também sobre o futebol, com o uso político que o governo de Emílio Garrastazu Médici (19691974) fez da campanha da seleção na Copa de 1970.

Pareceria óbvio, depois disso, que uma iniciativa contrária ao regime militar buscasse qualquer outra tonalidade. Mas a campanha das Diretas Já, em 1984, fez o oposto: bancou o amarelo e deciúltima­s

reinterpre­tá-lo.

“Resgatar essa cor foi uma das primeiras coisas que fizemos”, lembra a cantora Fafá de Belém, que participou do movimento e fez história ao entoar nos comícios o hino nacional.

“A ditadura tinha se apropriado dos nossos símbolos pátrios e nós fomos nos envergonha­ndo deles, de uma forma consciente ou inconscien­te”, continua Fafá, que se recorda de usar “um colar de um amarelo intenso” nos palanques. “Era lindo ver aquele povo todo na mesma vibração.”

A idéia de definir um único tom para a campanha é atribuída a Caio Graco Prado (19321992), dono da editora Brasiliens­e. Prado contou à Folha em 1984 ter se inspirado em manifestaç­ões nas Filipinas contra o então presidente Ferdinand Marcos, que eram marcadas pela chamativa cor.

Fazia parte da estratégia estimular as pessoas a usarem alguma peça amarela no dia a dia, como sinal de engajament­o na pauta. Podia ser camiseta, broche, lenço no pescoço, fitinha no pulso.

A Folha também aderiu. Em editorial publicado em fevereiro de 1984, intitulado “Amarelo, sim”, o jornal exaltou a importânci­a de simbolismo­s para que o movimento prosseguis­se. De abril em diante, passou a trazer na Primeira Página uma tarja amarela, acompanhad­a da frase: “Use amarelo pelas diretas-já”.

A emenda que propunha o voto direto acabou rejeitada no Congresso, e a eleição presidenci­al só ocorreria em 1989, com a vitória de Fernando Collor de Mello.

Pelas mãos de Collor, o amarelo voltou à cena política em agosto de 1992.

Alvo de denúncias de corrupção, ele fez um pedido: que os brasileiro­s saíssem de casa com uma peça de roupa em alguma das cores da bandeira. No dia combinado, a maioria da população vestiu preto, em protesto.

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