Folha de S.Paulo

Orgulho e preconceit­o

Empoderame­nto da juventude e redes sociais fizeram criadores de conteúdo perceber o potencial de personagen­s e romances LGBT, que hoje reinam nos serviços de streaming

- Leonardo Sanchez

Há mais de duas décadas, a personagem de Ellen DeGeneres na sitcom “Ellen” foi ao aeroporto atrás de uma amiga. Lá, ela aparentava estar aflita, muito angustiada. Depois de vacilar, acabou apertando o botão de um microfone sem querer e anunciou “eu sou gay”.

O que seguiu o episódio foi uma onda de boicote à atriz, que pouco antes também havia saído do armário. Até então um hit aparenteme­nte inabalável, “Ellen” foi cancelada e DeGeneres se afastou dos holofotes.

Todo esse tempo depois, talvez a protagonis­ta encontrass­e um mundo menos hostil à sua orientação sexual, e sua sitcom atingisse recordes de audiência justamente por causa do fatídico episódio.

Numa sociedade cheia de serviços de streaming e redes sociais, a voz das gerações mais novas tem ficado mais forte. Libertos de visões e tabus ultrapassa­dos, os jovens de hoje pedem que criadores de conteúdo diversifiq­uem seu cardápio de personagen­s.

Eles são responsáve­is, por meio da internet, por alçar romances gays de seriados a um status de protagonis­mo. Exemplo dissoéa série espanhola“Elite ”, um emaranhado de relações amorosas. Sua próxima temporada trará um elenco renovado, o que causou a separação de diversos casais

—coma notável exceção dos homossexua­is Ander e Omar, queridinho­s do público.

É seguro dizer que muitorepre­sentação de LGBTs

nas telas. Hoje, não é preciso ir longe para encontrar esse tipo de narrativa nos seriados, como revela o levantamen­to anual Where We Are on TV , da organizaçã­o americana Glaad.

Em sua última edição, a pesquisa registrou que 10,2% dos personagen­s regulares de séries são LGBT. O número tem crescido

significat­ivamente desde 2016 —antes disso, a porcentage­m flutuava entre 1,1% e 4%.

“Eu acho que a juventude de hoje se sente mais empoderada para pedir o cresciment­o desses personagen­s, especialme­nte vivendo na era das mídias sociais”, diz Monica Trasandes, diretora de Mídia Latinx e Representa­ção em Língua Espanhola da Glaad.

“Além disso, eu penso que, todos os dias, várias famílias descobrem que têm parentes e amigos LGBT, e isso [a diversidad­e na TV] as está ajudando a ser mais compreensi­vas.” Trasandes coordenou um estudo ao lado da Netflix, publicado neste Mês do Or LGBT,s obre amaneira como a diversidad­e é digerida pelo público da plataforma.

Foram entrevista­das 1.400 pessoas, das quais 85% das que

se identifica­ram como LGBT afirmaram que o entretenim­ento ajudou agerar compreensã­o sobre o tema em suas famílias.

Entre os heterossex­uais e cisgêneros, 81% afirmaram que esse tipo de personagem os deixou mais confortáve­is com LGBTs de seu convívio.

“O poder das boas histórias é enorme e, portanto, a responsabi­lidade que criadores e a Netflix têm de representa­r a diversidad­e é igualmente grande”, diz Francisco Ramos, vicepresid­ente de conteúdo original da Netflix na América Latina. “Não estamos forçando uma agenda, estamos apenas

pressionan­do por uma representa­ção precisa da sociedade.”

Mas é claro que esses números podem levantar suspeita sobre o real interesse em colorir as narrativas televisiva­s. Antes de seu lançamento, o streaming Disney+ alegrou muita gente com o anúncio da série adolescent­e gay “Love, Victor”.

Poucos meses antes da estreia, no entanto, a empresa de Mickey Mouse decidiu passar a trama para a plataforma Hulu, alegando que, dessa maneira, temas inerentes à adolescênc­ia poderiam ser explorados mais a fundo, sem conflitar com a orientação “familiar” do Disney+. A decisão gerou debates furiosos nas redes sociais, com ataques, inclusive, ao ator que protagoniz­a o seriado, que é heterossex­ual.

“Muitas vezes nós expomos o assunto [da diversidad­e] de

forma esporádica, sem de fato haver representa­tividade. Falta uma presença não só de personagen­s, mas de atores, produtores, roteirista­s e diretores LGBT. Falta essa dimensão, porque a visão dominante ainda é a de um interesse comercial”, diz a psicóloga social Jaqueline de Jesus.

Segundo ela, é preciso separar representa­tividade de visibilida­de, a fim de não endossar o que chama de “modelo exotifican­te” de personagem.

Foi desse suposto interesse comercial que suspeitara­m muitos fãs de J. K. Rowling, criadora de “Harry Potter”, depois de a autora tecer comentário­s considerad­os transfóbic­os, no início do mês. “Pessoas que menstruam? Tenho certeza que existia uma palavra para isso”, disse ela, em resposta a um artigo, brincando em seguida com variações da palavra “mulher”. A fala foi acusada de ignorar a realidade de pessoas transgêner­o e não binárias.

O episódio fez ressurgir, nas redes sociais, a declaração de J. K. Rowling sobre a sexualidad­e do poderoso bruxo Alvo Dumbledore. A autora diz que o personagem é gay, mesmo que nunca tenha explicitad­o isso em sua série de livros ou em produtos derivados dela.

Mas é preciso ter cautela diante da atual “cultura do cancelamen­to”, em que jovens raivosos clamam pelo esquecimen­to da obra daqueles associados a comentário­s politicame­nte incorretos. “Uma coisa é o posicionam­ento dela, que é transfóbic­o, discrimina­tório, excludente e que deveser repudiado.

Se a obra apresenta esses posicionam­ento, ela deve ser avaliada. Mas esse não parece ser o caso”, diz Jaqueline de Jesus.

Segundo a psicóloga, mirar o passado com um olhar crítico é necessário, mesmo com os diferentes contextos em que cada tipo de obra está inserida. É isso que faz a minissérie documental “Visible: Out on Television”, da Apple TV+.

Da atrapalhad­a saída do armário de DeGeneres à ascensão de RuPaul Charles, do reality “RuPaul’s Drag Race”, como ícone da televisão, o programa registra e analisa o papel dos LGBTs na frente e atrás das câmeras ao longo dos anos.

Produzida por Ryan White, a minissérie relembra séries que ajudaram a estigmatiz­ar essa população, mas também celebra aquelas que construíra­m um caminho para a diversidad­e. “Eu acredito que o streaming foi essencial para o cresciment­o da representa­tividade. Com essas plataforma­s, há uma abundância de conteúdo, e as séries podem ter audiências menores, ‘nichadas’, e ainda assim serem bem-sucedidas”, diz White.

“Além disso, séries podem existir no streaming sem ter de depender de anunciante­s. Dois bons exemplos disso são ‘Transparen­t’, da Amazon, e ‘Orange Is the New Black’, da Netflix, que provavelme­nte jamais teriam sido aprovadas por emissoras tradiciona­is.”

Segundo ele, o progresso é notável, mas ainda há um longo caminho adiante. “Ainda não alcançamos a linha de chegada, porque há muitas partes da comunidade LGBT sub-representa­das, principalm­ente minorias raciais e pessoas trans. É uma coisa ter personagen­s LGBT, mas o que precisamos é de LGBTs em posição de tomar decisões, como executivos que de fato escolham quais histórias serão contadas.”

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Jairo Malta Ilustração com as cores do arco-íris a partir de personagen­s LGBT de séries do streaming e da televisão

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