Folha de S.Paulo

Um ano após vencer o Nobel, premiê etíope enfrenta crise

Em meio a desentendi­mentos étnicos, protestos por morte de músico deixam 166 mortos no país

- Adriano Maneo

são paulo Menos de um ano após ganhar o Nobel da Paz por encerrar mais de 20 anos de hostilidad­es com a vizinha Eritreia, o premiê da Etiópia, Abiy Ahmed, 43, vê sua base de apoio se dividir e ameaçar sua possível reeleição no segundo país mais populoso da África.

O caso mais recente desse processo resultou em 166 mortos entre terça (30) e domingo (5), durante protestos contra o assassinat­o do músico e ativista Haacaaluu Hundeessaa.

As músicas de Hundeessaa, ex-preso político e símbolo dos oromo, mesmo grupo étnico do premiê, embalaram os atos que culminaram na derrubada do antigo governo e na chegada de Abiy ao poder, em 2018.

Após Abiy assumir como primeiro-ministro, no entanto, Hundeessaa passou a criticar a gestão, o que influencio­u a maneira como a mobilizada juventude oromo enxerga o atual chefe de governo.

“Havia um sentimento latente de insatisfaç­ão dos oromo que ia se acumulando nos últimos anos”, afirma Nicolas Lippolis, pesquisado­r do Centro de Estudos de Economias Africanas da Universida­de de

Oxford. “[Abyi] chegou ao poder com a agenda deles. Só que, quando ele assumiu, houve uma percepção de que a agenda havia se transforma­do. Em várias ocasiões a insatisfaç­ão dos oromo tem se manifestad­o contra o próprio Abyi.”

No complexo mosaico pluriétnic­o etíope, os oromo são o mais numeroso dos cerca de 80 grupos e subgrupos que dividem o território comandado durante praticamen­te todo o milenar império etíope pelos amara, até sua queda em 1974 —Abiy foi o primeiro oromo a ascender ao poder em quase 2.000 anos.

Isso só foi possível após três anos de protestos, dos quais Abiy era um dos líderes.

A política e os partidos na Etiópia são marcados por grandes divisões étnicas. Existem nove regiões administra­tivas baseadas nessas divisões e que, supostamen­te, teriam autonomia. Segundo Lippolis, porém, na prática isso não acontecia, e o governo central sempre acumulou poder.

Abiy assumiu um discurso pan-Etíope, que, ao mesmo tempo em que prega o slogan Medemer —sinergia—, também concede maior liberdade política aos grupos étnicos e liberta presos políticos.

Integrante­s da etnia oromo protestam em rodovia no estado de Minnesota, nos Estados Unidos, em apoio ao atos na Etiópia

Os atos que o levaram ao poder pediam mais direitos para esses grupos expressare­m suas identidade­s étnicas e mais autonomia em suas regiões.

A união na diversidad­e proposta por Abyi, porém, não era uma pauta.

“Antes a autonomia dos estados era formal, mas não ocorria na prática. Ele [Abyi] prometeu que seria uma autonomia real”, afirma Lippolis.

Abiy também implodiu a coalizão que liderava o país, comandada pela etnia tigrínio, e fundou uma nova legenda, o Partido da Prosperida­de, buscando encerrar distinções étnicas. Mas a iniciativa se tornou combustíve­l para lideranças regionais usarem um discurso etno-nacionalis­ta visando enfraquece­r a figura do premiê.

Com a instabilid­ade gerada a partir da morte de Hundeessaa,

os resquícios autoritári­os ressurgira­m. O Exército ocupa as ruas da capital desde quinta (2), e a internet está cortada há uma semana.

O expediente é comum em tempos de manifestaç­ões na Etiópia. Abiy, criador da agência de segurança cibernétic­a do país, retirou seus rivais do poder, mas manteve a prática.

“Pessoas com quem mantenho contato em Addis Abeba dizem que o que viram agora é pior do que todas as crises que testemunha­ram antes”, relata Lippolis.

“Mesmo em bairros onde moram funcionári­os de organismos internacio­nais, zonas nobres da capital, elas relatam ouvir tiros nas ruas, o que não é comum por lá.”

Na terça, após o início dos sangrentos protestos, Abiy falou em “inimigos internos e externos” que estariam tentando destruir sua agenda reformista. Afirmou também, sem oferecer detalhes, que haveria um plano de iniciar uma guerra civil no país.

Segundo o premiê, a ideia estava sendo planejada havia algum tempo pela mídia e por usuários no Facebook, mas garantiu que a tentativa havia sido frustrada pelas forças de segurança e que os responsáve­is responderi­am na Justiça.

Na terça, 35 pessoas foram presas após um impasse entre a polícia e os seguranças de Jawar Mohammed, 34, também dopovoorom­oefigurace­ntral na história recente da Etiópia.

Dono da rede de notícias OMN, ele retornou de dez anos de exílio nos Estados Unidos em 2018, quando Abiy chegou ao poder.

Jawar era acusado pelo antigo governo de crimes contra a Constituiç­ão, e a OMN, classifica­da como uma organizaçã­o terrorista. Quando retornou ao país, foi recebido como herói. Hoje, tornou-se mais um crítico de Abiy, afirmando que o premiê abandonou a agenda dos oromo.

No ano passado, após acusar o governo de tentar retirar sua escolta oficial para depois assassiná-lo, mobilizou grandes protestos que resultaram em 78 mortes.

Jawar e seus seguidores foram presos na semana passada enquanto tentavam desviar o corpo de Hundessaa para ser enterrado na capital Addis Abeba em vez de sua cidade natal, Ambo. Segundo a polícia, no carro foram encontrado­s oito fuzis, cinco pistolas e nove rádios transmisso­res.

Depois de romper com o primeiro-ministro, filiou-se a um partido rival e tem indicado que concorrerá contra Aby no próximo pleito.

As eleições, que já haviam sido adiadas para agosto deste ano, foram postergada­s outra vez por causa do coronavíru­s. Ainda sem data definida, devem ocorrer em 2021.

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Stephen Maturen - 1º.jul.20/Getty Images/AFP
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