Tratamento distinto a Decotelli é visto como racismo estrutural
Assim como ministros que seguem no governo Bolsonaro, economista incluiu informações falsas no currículo
são paulo Nomeado como terceiro ministro da Educação da gestão de Jair Bolsonaro (sem partido), o economista negro Carlos Alberto Decotelli deixou o governo antes mesmo de ser empossado. Descobriu-se que seu currículo, inicialmente celebrado, continha titulações falsas, entre outras inconsistências.
O fato de outros ministros do mesmogoverno—RicardoSalles (Meio Ambiente), Damares Alves( Mulher, Família e DireitosHumanos )— terem sido flagrados em fraudes semelhantes, massem sofrerem as mesmasc ons e quências, demonstra aqui loque o advogado e professor universitário Silvio Almeida, autor de “Racismo Estrutural” (Pólen), chama de “armadilha do racismo”.
“É ingenuidade ou falta de rigor analítico imaginar que um negro vai receber o mesmo tratamento de um branco, especialmente ao assumir uma posição de destaque na alta administração pública, em um dos ministérios mais cobiçados, seja por seu orçamento ou pela visibilidade que traz ”, avalia ele.
“O racismo está presente nas relações de podere na política de maneira fundamental, especialmente em um contexto político conflagrado, em um governo de extrema-direita. Ele não éo primeiro ministro que mente no currículo. Mas foi tratado de maneira diferente.”
Para Almeida, a diferença no tratamento dado ao mesmo tipo de fraude curricular cometida por outros membros do governo não ameniza a gravidade do erro de Decotelli, mas evidencia a falta de consciência racial do economista.
“Tivesse ele essa consciência, saberia que essas fragilidades provocadas pela sua conduta o levariam a essa tragédia pessoal. Consciência racial é uma forma de autodefesa.”
Em seu currículo, disponível na plataforma Lattes (criada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico para agregar informações acadêmicas de pesquisadores ), D eco tel li anunciava ao menos dois títulos falsos. Um doutorado pela Universidade Nacional de Rosa rio, naArgentina, cujo reitor negou que o economista tenha obtido, e um pós-doutorado daUniversidade de W up per tal, na Alemanha, que a instituição informou não oferecer. O currículo foi modificado após as revelações.
Da mesma maneira, o ministro branco Ricardo Salles inventou ser mestre em direito público pela Universidade Yale, nos EUA. Usava o título na biografia que acompanhava seus artigos. Descoberto, Salles atribuiu o falso mestrado a um erro de sua assessoria.
Já a ministra branca D amares Alves costumava se apresentar como mestre em educação e em direito constitucional e da família, sem informar as instituições nas quais teria obtido os títulos. Questionada, recorreu à religião e creditou os títulos ao “ensino bíblico”.
Outro caso emblemático foi o da química e pesquisadora negra Joana D’Arc Félix de Sousa, que descrevia em seu currículo um diploma da Universidade Harvard (EUA), revelado inexistente. O governador branco do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), também turbinou seu currículo com um diploma falso de Harvard.
A diferença na repercussão de ambos os casos fica evidente em uma busca no Google. Realizada com as mesmas palavras-chave —“diploma”, “falso” e “Harvard”— resulta em 3.870 ocorrências quando aliada ao no medo governador, e em 7.110 ocorrências quando aliada ao nome da pesquisadora.
Para Carolina, a desqualificação de Decotelli associada a sua mentira curricular, que é fato, tem consequências que extrapolam a individualidade do economista, atingindo as pessoas negras coletivamente.
“Isso retorna subjetivamente de maneira muito nociva e reforça o imaginário de que a juventude negra não vai conseguir sair do destino traça dopara ela: precarização, baixadistância dos mais altos níveis deformação e excelência .”
Isso se deve a um processo que configura um dos maiores privilégios da branquitude, segundo a psicóloga branca Lia Vainer Schucman, professora da Universidade Federal de Santa Catarina e autora de “Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo: Branquitude, Hierarquia e Poder na Cidade de São Paulo” (Veneta).
Segundo S chu cm an, enquantocada indivíduo branco representa apenas asi próprio e credita seus atributos positivos a conquistas pessoais, e não a privilégios de raça, por outro lado, “cada negro sabe que qualquer julgamento negativo sobre um indivíduo de seu grupo racial recai sobre todas as pessoas contidas nele”.
De acordo com a pesquisadora, isso tem a ver com o próprio processo de construção social das raças, inventadas pelos brancos a partir do processo de colonização para apontar e hierarquizar grupos diferentes do seu.
Para Almeida, os casos de pessoas negras que chegam a essas posições são jogados na conta da excepcionalidade desses indivíduos. “O racismo faz com que o negro tenha de corresponder a padrões técnicos e morais que não são exigidos dos brancos. Sobre os negros, pesa um imaginário, criado pelo racismo, de incompetência e irracionalidade, que geram desconfiança.”
Sendo assim, Schucman avalia como uma expressão do racismo a defesa de Decotelli feita por Elizabeth Guedes, presidente da Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup) e irmã do ministro da Economia.
Ao declarar à Folha que Decotelli, a quem conhece há 30 anos, havia passado por achincalhe “absurdo”, ela questionou: “Cadê o movimento preto, que gosta de defender? Ninguém vai defender esse preto? Quantos brancos já fizeram isso e não aconteceu nada?”.
“O movimento negro ter de responder por ele ou defendêlo é racismo. Parte da ideia de que qualquer um representa o grupo dos negros politicamente organizados”, avalia Schucman. “Por que o movimento negro teria de defender alguém que não está alinhado aos seus princípios e bandeiras?”
Levantamento da agência de recolocação DNA Outplacement com base na análise de 6 mil currículos apontou que 75% dos brasileiros turbinam, deturpam ou mentem em suas apresentações profissionais.
A ex-presidente Dilma Rousseff (PT) teve de corrigir seu currículo depois de revelado que ela havia cumprido créditos de mestrado e doutorado na Unicamp, mas, sem defender atese, não tinha os títulos qued escrevia.
Entre as variáveis que levaram à saída de Decotelli do governo, pode-se especular sobre o peso da pasta da Educação ou a extensão das inconsistências no seu Lattes. Velez, um de seus antecessores, que erro unos eu currículo na mesma plataforma 22 vezes, segundo levantamento do site Nexo, seria o contraexemplo.
Ainda que mentiras tenha tido perna curta em todos esses episódios, foi apenas no caso de Decotelli que ela lhe passou uma rasteira.