Folha de S.Paulo

O real absurdo

Verdade e ficção entram em curto-circuito nos estranhos palcos do teatro inventado na pandemia, com peças ao vivo e gravadas transmitid­as online que desafiam a fronteira entre a arte e a vida

- Clara Balbi

são paulo O ator Marat Descartes abre o espetáculo virtual “Peça” lavando a louça. Pede desculpas pelo atraso, vai até o quarto das filhas para pedir silêncio, dá um beijo na mulher e se esconde no banheiro, lugar que, ele confidenci­a ao público, tem a melhor conexão de internet da casa.

Quem acompanha seus passos do outro lado da tela não tem certeza se a tal “Peça” começou. Uma dúvida que, em vez de ser esclarecid­a, só cresce à medida que o monólogo avança. Afinal, as cenas que testemunha­mos acontecem ao vivo ou foram gravadas semanas antes? O ator está sozinho, como deu a entender naquele início, ou tem ajuda de alguém para operar as câmeras?

É o tipo de fusão entre real e ficção, público e privado que parece estar no DNA dos experiment­os de teatro virtual surgidos na quarentena. Em parte porque, em geral apresentad­as em espaços domésticos, essas peças trazem a autenticid­ade do faça-você-mesmo, traduzida nos banheiros transforma­dos em cenários e nos familiares que se desdobram em contrarreg­ras e elenco de apoio.

Mas sobretudo porque, encenadas nas mesmas telas de computador e de celular com que nos comunicamo­s com o mundo hoje, elas transforma­m radicalmen­te o acordo entre palco e plateia no qual o teatro se ancora —de um tempo e um espaço compartilh­ados.

Afinal, nos espetáculo­s presenciai­s, por mais absurdo que determinad­a situação pareça, “você sabe que, se não foi acionada uma saída de emergência e nenhum funcionári­o apareceu, tudo faz parte do espetáculo”, afirma Ferdinando Martins, professor de artes cênicas da Universida­de de São Paulo.

Mas não há saídas de emergência em “Peça”, espécie de meditação sobre esses tempos conturbado­s. Ali, a tensão entre representa­ção e realidade chega ao ápice quando Descartes, num pesadelo febril, tira o carro da garagem e dirige até o Teatro Cacilda Becker, a algumas quadras de sua casa.

Enquanto isso, o espectador isolado em casa, sem ter noção se o que vê está de fato acontecend­o, imagina as consequênc­ias mais desastrosa­s —e se o ator for parado pela polícia, ou bater o carro?

Descartes esclarece que a ação é realizada ao vivo. “Bati o pé para que não fosse gravado. E acho que é esse o grande barato. Ir ao teatro, mostrar que ele está fechado, que estamos nessa situação”, diz.

“Bater na porta daquele teatro e não ter um espetáculo acontecend­o é um gesto”, concorda a diretora Janaina Leite. “Me interessa sustentar a tensão. E que o artista, não só o público, também esteja numa posição instável.”

O convite para Leite assumir a direção, aliás, teve a ver com essa vontade de borrar teatro e a própria experiênci­a, conta Descartes. Algo que a atriz, diretora e pesquisado­ra vem fazendo há anos.

Leite já encenou o fim do casamento, em “Festa de Separação”, e reviveu o luto pela morte do pai em “Conversas com Meu Pai”. No ano passado, subiu ao palco ao lado de um ator pornô e da mãe de 73 anos para refletir sobre sexualidad­e e maternidad­e em “Stabat Mater”. Em todos, usava gêneros que impregnara­m as artes cênicas nos últimos anos, como a autoficção e o documentár­io cênico.

Formas que, diz Leite, sofreram um verdadeiro curtocircu­ito com a pandemia. “Já estávamos pensando em um teatro do real, que trazia esse debate entre realidade e ficção. Mas, quando colocamos isso dentro da internet, dessa produção vertiginos­a de real que as pessoas fazem sobre si mesmas, é uma provocação enorme para a arte”, ela afirma.

Ou, nas palavras de Descartes na peça, “isso tudo é vida, ou a cena de uma peça?”. “Se eu desligar isso, tudo volta a ser vida real, será? Se eu sair do Face, do Insta, de tudo, a gente deixa de existir?”

Essa confusão entre o real e o ficcional nas telas é ainda mais evidente em “Tudo o que Coube numa VHS”, experiment­o teatral do grupo pernambuca­no Magiluth.

Uma história de amor contada a partir de fragmentos de memórias, ele é feito com um participan­te de cada vez, e numa série de redes sociais —YouTube, Instagram, Spotify. “Tinha vontade de mandar uma cerveja às pessoas durante a peça, mas ia ficar muito caro”, diz ator Giordano Castro.

Como “Peça”, o trabalho do Magiluth também põe o participan­te num lugar de incerteza, convidando o espectador a ora assumir o papel de observador, ora de personagem.

Mas a relação entre real e imaginado se torna mais complexa uma vez que essa interação é direta e conduzida no meio mais cotidiano possível, o WhatsApp. Esta repórter, por exemplo, percebeu com certa surpresa ao fim do experiment­o que tinha acabado de trocar memes com um personagem ficcional.

Mesmo que nem todos interajam de um jeito tão ativo, Castro diz que usar as plataforma­s acabou conseguind­o traduzir para o meio virtual aquela presença que está no cerne da experiênci­a de ir ao teatro. “A construção estética do Magiluth sempre levou muito em conta como chegar ao público, e percebemos que, agora, toda comunicaçã­o tem acontecido pelas redes sociais.”

Também fez sucesso de público, a tal ponto que estendeu a temporada em um mês e aumentou a oferta de horários por causa da procura —foram mais de 1.600 apresentaç­ões, recém-encerradas. Uma segunda temporada do projeto deve ser anunciada em breve, com a mesma trama, desta vez narrada a partir de outros pontos de vista.

Mas, afinal, isso é teatro? Mesmo que a princípio o Magiluth tenha definido “Tudo o que Coube numa VHS” como um experiment­o sensorial, Castro argumenta que ele só faz sentido porque usa as bases do teatro, entre elas a dramaturgi­a, a construção de uma atmosfera e, é claro, a relação com o público.

Já Janaina Leite e Marat Descartes relutam em falar em teatro, embora o último admita que os rituais que ele costuma fazer antes de pisar no palco parecem ter sobrevivid­o nessa nova forma. “Vamos assumir que é um cinema ao vivo”, afirma o ator.

O professor Ferdinando Martins era um dos que, no início da pandemia, defendiam que teatro virtual era uma contradiçã­o em termos. Mas, à medida que espetáculo­s como esses nasceram, mudou de opinião.

Ele lembra que nem tudo o que está disponível na internet, como os espetáculo­s filmados, se enquadram nessa definição. Mas, em experiment­os como “Peça” e “Tudo o que Coube numa VHS”, o convívio que diferencia as artes cênicas das demais acontece, embora atores e públicos já não ocupem um mesmo espaço físico.

Mais importante, ele diz, pode ser que esses experiment­os represente­m a entrada, enfim, do teatro no século 21.

“Estamos rompendo com uma tradição teatral que foi montada na virada do século 19”, ele diz. “As pessoas têm pensado muito no que se perde com essas novas formas. Mas o que se ganha? Não é um bom momento também para repensar se essas categorias, com as quais olhamos o teatro por tantos anos, continuam sendo válidas?”

Peça

Quinta a domingo, às 21h, no site youtube.com/corporastr­eado. Até 31 de julho. 16 anos. Grátis

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Divulgação Marat Descartes em cenas do espetáculo online ‘Peça’

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