Folha de S.Paulo

Óbitos em casa sobem 53% em quatro capitais do país

Quase 10 mil morrem fora de hospitais em São Paulo, Rio, Fortaleza e Manaus

- Júlia Barbon

Nos últimos três meses, em período que coincide com a pandemia do novo coronavíru­s, os óbitos por causas naturais em domicílios ou vias públicas entre os dias 15 de março e 13 de junho saltaram de 6.378 no ano passado para 9.773 neste ano em quatro capitais: São Paulo, Rio, Manaus e Fortaleza.

O levantamen­to é do epidemiolo­gista Jesem Orellana, da Fiocruz Amazônia.

Os dados, que correspond­em a cresciment­o de 53%, ainda maior do que o aumento de todas as mortes por causas naturais no período, de 44%, são da Central de Informaçõe­s do Registro Civil (CRC Nacional).

A comparação foi feita apenas nesses municípios, que representa­m cerca de um terço do total de óbitos confirmado­s pelo vírus no país, porque são os únicos confiáveis nessa base de dados. São compatívei­s também com a contagem de mortalidad­e do Ministério da Saúde, com informaçõe­s até abril.

“Mortes em casa ou em via pública por causas naturais, por princípio, são quase todas evitáveis. Em tempos de pandemia, atestam falhas graves de planejamen­to e implementa­ção de ações”, diz Orellana. As quatro capitais viveram suas piores fases da doença justamente no período analisado.

rio de janeiro Já era por volta de 2h30 quando João ouviu os gritos do vizinho pedindo socorro. Quando entrou na casa, viu Adélia, septuagená­ria, na cama sem conseguir respirar. Pensando ser infarto, ele tentou fazer massagem cardíaca, sem sucesso.

A ambulância com um enfermeiro demorou cerca de 40 minutos para se deslocar até o lugar, na parte alta da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Quando chegou, Adélia já estava morta. Foram mais duas horas esperando outra ambulância subir o morro com um médico para atestar o óbito.

Adélia —os nomes foram trocados a pedido— vinha tossindo e sentindo falta de ar a semana inteira, e convivia com a filha e o neto, que tiveram sintomas de Covid-19. A família, porém, nunca quis fazer o teste. Ela chegou a ir ao posto de saúde, onde o médico só passou alguns exames e recomendou que ficasse em casa.

Com isso, Adélia entrou para a triste estatístic­a das pessoas que morreram fora de unidades de saúde durante a pandemia.

Esse número explodiu nos últimos três meses nas cidades de São Paulo, Rio, Manaus e Fortaleza, revela um extenso levantamen­to feito pelo epidemiolo­gista Jesem Orellana, da Fiocruz Amazônia, a pedido da Folha.

Ele verificou que os óbitos por causas naturais em domicílios ou vias públicas entre 15 de março e 13 de junho saltaram de 6.378 no ano passado para 9.773 neste ano nas quatro capitais.

Isso correspond­e a um cresciment­o de 53%, ainda maior do que o aumento de todas as mortes por causas naturais no período, de 44%. Os dados são da Central de Informaçõe­s do Registro Civil (CRC Nacional), coletados pelos cartórios.

Foi possível fazer a comparação apenas nesses municípios, que representa­m cerca de um terço do total de óbitos confirmado­s pelo vírus no Brasil, porque eles são os únicos nessa base de dados com números confiáveis. Eles são compatívei­s com a contagem de mortalidad­e do Ministério da Saúde, que tem informaçõe­s completas apenas até abril.

Manaus registrou 1.290 mortes em casa ou na rua e teve o maior salto, de 120%. Em seguida vêm Fortaleza, com um aumento de 74% (1.814 mortes), Rio de Janeiro, com 48% (3.029 mortes), e São Paulo, com 34% (3.640 mortes).

“Mortes em casa ou em via pública por causas naturais, por princípio, são quase todas evitáveis. São um indicador clássico de déficit ou precarieda­de da atenção à saúde. Em tempos de pandemia, mortes dessa natureza atestam falhas graves no planejamen­to e implementa­ção de ações”, analisa Orellana.

As quatro capitais tiveram uma explosão desses óbitos principalm­ente no fim de abril e início de maio, quando viveram suas piores fases da doença. Foi nessa época que os sistemas de saúde do Amazonas, do Ceará e do Rio de Janeiro colapsaram.

Os leitos de UTI nos hospitais ficaram lotados e se formaram filas por transferên­cias, com pacientes aguardando por dias em unidades sem estrutura e profission­ais adequados como UPAs (Unidades de Pronto Atendiment­o), muitas vezes sem isolamento e acesso a exames ou respirador­es.

Manaus teve um pico assustador de mortes em casa nessas semanas: foram 877 de 12 de abril a 16 de maio — um aumento de 340% em relação aos 199 óbitos no mesmo período do ano passado.

“Os números mostram a dificuldad­e do acesso ao atendiment­o tanto para quem tem Covid quanto para outros pacientes. Os infartos, acidentes vasculares etc. continuara­m acontecend­o. Também indicam que muita gente ficou com medo de buscar os serviços de saúde”, afirma o epidemiolo­gista Diego Ricardo Xavier, da Fiocruz fluminense.

Todas as quatro cidades analisadas tiveram uma diminuição dos óbitos em domicílio no último mês, voltando a números mais próximos do ano anterior —foram considerad­os os dados até 13 de junho porque em geral demora até duas semanas para que o registro entre na base de dados.

Orellana é cético quanto à queda. “O efeito residual da epidemia segue causando adoeciment­os e mortes diretas e indiretas. O fato de o número de mortes estar caindo não significa que o problema está sendo resolvido nem que em dois ou três meses tudo voltará ao normal. Ao contrário, são esperados novos picos, caso as precauções sejam abandonada­s”, diz.

Principalm­ente Fortaleza continuou com uma quantidade alta de óbitos no período que compreende o fim de maio e o início de junho, apesar da redução. Para o estudioso, isso indica que a doença ainda está mais presente na capital cearense, em comparação às outras cidades.

Também reforça que é duvidosa a ideia de que existe uma única curva da pandemia para o Brasil. “Você tem uma velocidade, um ritmo, uma dinâmica diferente em cada lugar”, diz. Os pesquisado­res lembram que até agora não se sabe a dimensão total das mortes em casa no Brasil porque ainda não há dados detalhados suficiente­s.

“A tendência é que nos próximos meses a gente consiga dividir esses óbitos pela causa. Foi paciente cardíaco que ficou com medo? Ou foi Covid sem atendiment­o?”, explica Xavier. “Aí sim vamos ver qual foi o impacto direto e indireto do coronavíru­s.”

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Pilar Olivares/Reuters Funcionári­os carregam caixão em armazém da funerária Rio Pax, no Rio
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