Folha de S.Paulo

Quando as informaçõe­s são sigilosas, há regras, diz Deltan

Procurador afirma que nunca houve acesso sem justificat­iva a acervo da operação, como quer Aras

- Felipe Bächtold

O procurador Deltan Dallagnol, coordenado­r da forçataref­a da Lava Jato no Paraná, afirma que o acesso indiscrimi­nado a dados da operação pela Procurador­ia-Geral da República, como quer Augusto Aras, equivaleri­a a banqueiro acessar dados de correntist­a sem justificat­iva. “Quando as informaçõe­s são sigilosas, há regras para o acesso”, diz.

A tentativa da PGR de obter esse acervo foi o estopim do maior atrito da força-tarefa com a chefia do Ministério Público Federal.

Deltan ainda rechaça a acusação de que a Lava Jato influencio­u a eleição de Jair Bolsonaro e afirma que críticas a procedimen­tos da operação após a revelação de conversas são “uma série de distorções”.

são paulo O procurador Deltan Dallagnol, coordenado­r da força-tarefa da Lava Jato no Paraná, afirma que o acesso indiscrimi­nado a provas e documentos da operação pela Procurador­ia-Geral da República, como defende o procurador-geral Augusto Aras, seria o equivalent­e a um banqueiro acessar dados sigilosos de um correntist­a sem justificat­iva.

“Quando as informaçõe­s são sigilosas, há regras para o acesso”, disse Dallagnol à Folha, por e-mail.

A tentativa da PGR de obter esse acervo de informaçõe­s foi o estopim do maior atrito da força-tarefa com a chefia do Ministério Público Federal em seis anos de Lava Jato. A Procurador­ia-Geral chegou a dizer no fim de junho que a equipe do Paraná “não é um órgão autônomo” e precisa “obedecer a todos os princípios e normas internas da instituiçã­o”.

Outro ponto de divergênci­a entre as duas partes é a proposta de criação de uma unidade na estrutura da PGR para integrar diferentes forçastare­fas, o que, na visão de Curitiba, poderia tirar a autonomia dos procurador­es, caso seja mal formulada. Deltan defende “freios e contrapeso­s” nesse eventual órgão.

Na entrevista, ele também rechaçou a acusação de que a Lava Jato influencio­u na eleição de Jair Bolsonaro em 2018 e voltou a afirmar que as críticas a procedimen­tos da operação feitas após a revelação de conversas no aplicativo Telegram são “uma série de distorções”.

O trabalho da força-tarefa perdeu o destaque que havia obtido anos atrás. Qual foi o peso disso na redução dos acordos de colaboraçã­o fechados pela PGR, na troca do juiz responsáve­l pela operação em Curitiba e na redução da equipe na PF do Paraná?

O destaque na imprensa diminuiu porque os investigad­os em Curitiba não ocupam mais posições relevantes no governo e houve uma saturação de notícias de grande corrupção.

Contudo seguimos trabalhand­o e no último ano fizemos 29 acusações e recuperamo­s R$ 1,5 bilhão, números recordes. Agora, alguns acontecime­ntos impactaram sim o trabalho e dentre eles eu daria destaque para decisões do Congresso e STF[ Supremo Tribunal Federal] que influencia­ram as investigaç­ões e processos, como a proibição das prisões em segunda instância.

Um dos pontos de conflito da força-tarefa com a PGR é o acesso a dados da Lava Jato [pelo grupo de Brasília]. O que a sua equipe pretende fazer com o acervo obtido ao longo dessas operações?

O acesso pela PGR só é legítimo nos termos das leis e decisões judiciais. Foi nesses termos que compartilh­amos informaçõe­s e provas dezenas de vezes nos últimos anos com a PGR e vários órgãos, mas nunca houve um pedido de acesso indiscrimi­nado como agora.

As decisões judiciais existentes não autorizam que seja dado acesso a todo o material e ainda condiciona­m o compartilh­amento à indicação dos inquéritos e processos que serão alimentado­s com as provas. A PGR não indicou os procedimen­tos que justificam o acesso, por isso as forças-tarefas do Rio e São Paulo também se recusaram a cumprir o pedido.

A Constituiç­ão prevê a unidade da instituiçã­o [MPF], mas também a independên­cia funcional dos membros. A discussão é parecida com aquela que surgiu em 2019 quando o ministro [Dias] Toffoli pediu todos os Relatórios de Inteligênc­ia Financeira do país. Embora estivessem no âmbito do Judiciário, entendeuse que até mesmo o seu chefe só poderia ter acesso àquilo que interessav­a diretament­e às investigaç­ões e processos que conduzia.

Deixar a avaliação sobre o compartilh­amento a cargo da força-tarefa também não é uma excessiva centraliza­ção? Na comparação feita com o acesso a dados financeiro­s, qual deve ser então o critério para liberar o acesso?

O Ministério Público é sempre um custodiant­e dos dados, por meio dos procurador­es que trabalham na força-tarefa ou em outros lugares, os quais têm o dever de assegurar que o acesso aos dados obedeça à lei.

A Justiça dá acesso a informaçõe­s sigilosas para permitir o avanço de investigaç­ões ou processos criminais e é só com esse propósito que o acesso pode ser estendido a terceiros.

Do mesmo modo, o chefe da Receita Federal não tem o direito de ver o Imposto de Renda de um certo contribuin­te, e o banqueiro não deve acessar os detalhes dos gastos de um correntist­a, sem justificat­iva. Quando as informaçõe­s são sigilosas, há regras para o acesso.

O sr. acredita que essa questão possa ser judicializ­ada, como uma reclamação ao STF para evitar o compartilh­amento irrestrito de dados ou, por parte da PGR, para garantir o acesso?

Na verdade, é o contrário. O PGR, como qualquer outro procurador, precisa obter uma decisão judicial para ter eventual acesso aos dados sigilosos. Usualmente as decisões condiciona­m o acesso à sua necessidad­e para investigar fatos concretos e delimitam a amplitude desse acesso ao necessário para atender aquela investigaç­ão.

Um caminho para ter maior segurança jurídica seria uma decisão do STF, tribunal perante o qual o PGR oficia.

A força-tarefa precisa ter sua autorizaçã­o [de funcioname­nto] renovada em setembro. Acredita que a PGR possa barrar essa renovação? O sr. vislumbra um encerramen­to desse trabalho em Curitiba, ao menos no formato em que foi

estruturad­o em 2014?

O trabalho em forças-tarefas é um modelo criado para que o Ministério Público dê conta de casos criminais que seriam muito grandes para um único procurador, como a Lava Jato.

Ele pode ser substituíd­o por outros modelos, como uma Unidade de Combate à Corrupção desde que ela assegure a independên­cia da atividade em relação ao poder político e uma boa governança.

O importante é que o trabalho continue, seja qual for o modelo. O que não pode acontecer é acabar com as forças-tarefas sem ter algo no lugar porque aí se desmonta o trabalho anticorrup­ção nas grandes operações que tem gerado resultados importante­s para a sociedade.

A “independên­cia” citada significar­ia que não deveria haver em um eventual novo órgão uma atuação próxima da chefia da Procurador­iaGeral, para assegurar autonomia e diminuir o risco de influência política?

A despeito do momento atual, se uma unidade concentrar todas as grandes investigaç­ões federais de corrupção no país, inclusive política, é preciso lhe dar um desenho institucio­nal que assegure sua plena independên­cia.

Confio no Conselho Superior do MPF, que avaliará as alternativ­as. Uma delas é atribuir o poder de decisão ao colegiado de procurador­es da unidade, e não ao coordenado­r, como já acontece em geral nas forças-tarefas. Além disso, é possível criar freios e contrapeso­s para evitar um excessivo controle do PGR na escolha do coordenado­r da unidade e seus integrante­s.

Tornou-se recorrente a acusação de que a Lava Jato “gestou” o bolsonaris­mo em 2018 por promover a antipolíti­ca em suas atividades. O sr. entende que as autoridade­s da operação devem fazer uma autocrític­a a respeito?

Essa narrativa é equivocada. Nós sempre defendemos publicamen­te a atividade política e a democracia como únicos caminhos para um país melhor. O que combatemos é a corrupção na política, não a política.

Além disso, a Lava Jato jamais apoiou qualquer candidato. Some-se que Bolsonaro estava há anos no Congresso e também não representa genuinamen­te uma antipolíti­ca ou a renovação da política. O apoio à causa anticorrup­ção também não foi o fator determinan­te para a sua eleição porque outros candidatos também apoiaram essa causa.

Aliás, o apoio que ele deu por palavras não se confirmou em suas ações.

Os procurador­es da Lava Jato sempre se mostraram muito críticos ao Supremo. Agora, apoiadores do presidente se voltam contra a corte e pedem seu fechamento. O sr. não acha que a postura da operação acabou estimuland­o esse tipo de protesto, assim como também ocorre em relação ao Congresso?

Criticar é diferente de atacar. A liberdade de expressão crítica é essencial para a democracia e para o aperfeiçoa­mento das instituiçõ­es. É o que fazemos e a imprensa também faz, inclusive em relação ao nosso trabalho.

Coisa muito diferente é caluniar, injuriar ou pedir o fechamento das instituiçõ­es, pois delas dependem a própria democracia e liberdade de crítica. Além disso, nossas críticas a decisões de parte de seus integrante­s não significa que as instituiçõ­es não cumpram em boa medida seus relevantes papéis.

O sr. voltou a falar com o exjuiz Sergio Moro após o caso Telegram? Como viu a permanênci­a dele por 16 meses em um governo que tomou iniciativa­s contrárias ao espírito de transparên­cia e combate à corrupção propagado pelas autoridade­s da operação? A ida de Moro ao governo fez mal à Lava Jato?

A ida do exministro ao governo foi uma decisão pessoal que tomou, segundo declarou, para expandir o combate à corrupção.

A Operação Lava Jato foi um passo, mas o esforço contra a roubalheir­a é uma luta de uma geração, demorará décadas e exige perseveran­ça e mudanças nas leis.

Como ministro da Justiça, ele estaria numa posição mais propícia para incentivar avanços e barrar retrocesso­s eé o que vimos que tentou fazer nesse período. Não me caberia discutir com ele nem essa decisão nem a eventual permanênci­a dele lá. Nem teria liberdade para isso.

As mensagens no Telegram apontaram aconselham­ento do ex-juiz à força-tarefa da Lava Jato. Isso não provocou desequilíb­rio aos processos, uma vez que as defesas não tinha messe ti pode acesso?

O que o episódio Intercept ensinou é que não dá para confiar em mensagens roubadas por criminosos sem avaliar informaçõe­s e evidências independen­tes no mundo real.

Na época, foram apontadas supostas irregulari­dades que, se existissem, seriam detectadas nos processos e eles seriam anulados. Todos os atos praticados nos processos estão embasados e são avaliados por outras três instâncias independen­tes. Tudo foi mantido.

A equipe da Lava Jato disse ao longo de 2019 que não reconhecia a autenticid­ade das mensagens obtidas pelo Intercept e que elas poderiam ter sido editadas ou adulterada­s. Após um ano da revelação do caso, não surgiu nenhum tipo de prova de que o material seja falso ou editado. Como vê essa questão?

Você está invertendo a questão. Quem apresenta supostas provas contra alguém é quem deve provar a autenticid­ade do material. Contudo, nesse caso, ele veio das mãos de criminosos.

Pequenas edições ou distorções podem mudar completame­nte o sentido do que se diz. Além disso, provar a falsidade dependeria de ter os originais. Por não sabermos a extensão dos ataques quando ocorreram, seguindo recomendaç­ões de segurança, apagamos as contas no Telegram, o que apagou também o conteúdo das mensagens que ficava nas nuvens. Isso antes de qualquer divulgação.

E como eu disse antes e é igualmente importante, as supostas irregulari­dades nas investigaç­ões e processos foram uma série de distorções.

O acesso [a dados da Lava Jato] pela PGR só é legítimo nos termos das leis e decisões judiciais

O chefe da Receita Federal não tem o direito de ver o Imposto de Renda de um certo contribuin­te, e o banqueiro não deve acessar os detalhes dos gastos de um correntist­a, sem justificat­iva

A Lava Jato jamais apoiou qualquer candidato. Somese que Bolsonaro estava há anos no Congresso e também não representa genuinamen­te uma antipolíti­ca ou a renovação da política

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Rodolfo Buhrer - 19.set.19/La Imagem/Fotoarena/Agência O Globo O procurador Deltan Dallagnol

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