Folha de S.Paulo

Como a iminência da morte mudou as músicas de Cazuza

Morto há 30 anos, artista tomou ‘soro da verdade’, passou a cantar sua geração e conversou com deuses em seus versos

- Lucas Brêda

“Senhoras e senhores, trago boas novas”, Cazuza canta, num de seus versos mais famosos, de“Boas Novas ”, faixa de 1988.“Eu vi acarada morte, e ela estava viva .”

Antes da música, o cantor e compositor, hoje se sabe, havia sido internado com problemas decorrente­s do HIV, e teve dias entre avida e amor te. Àquela altura, o diagnóstic­o de Cazuza ainda não era conhecido pelo público, mas seu nome já estava atreladoà doença, quenos anos 1980 era tanto novidade quanto uma sentença de morte.

Depois de três anos de tratamento, Cazuza não resistiu e morreu há exatas três décadas, em 7 de julho de 1990, aos 32. As homenagens à memória do artista —entre elas um disco de inéditas— foram adiadas por causa da pandemia, mas sua obra segue relevante.

Cazuza é de uma geração de artistas —entre eles o escritor Caio Fernando Abreu e o cantor Renato Russo— que transforma­ram em arte a iminência da própria morte. O cantor de “Exagerado” estava em turnê com seu segundo disco solo, “Só Se For a Dois”, em 1987, quando soube que tinha Aids, e foi a Boston em busca de tratamento.

“Está pintando uma coisa diferente em 1988, primeiro porque dei uma parada para pensar na minha vida, estive muito mal, muito doente, quase morri. Foi uma coisa que me mudou”, ele disse ao Jornal da Tarde, acrescenta­ndo que o novo momento o “levou a uma mudança até como letrista”.

No show “O Tempo Não Para”, dirigido pelo namorado eventual e amigo Ney Matogrosso, Cazuza cantava que seus dias estavam “de par em par” (na faixa-título), encarava a morte (em “Boas Novas”), celebrava a brevidade da existência (em “Vida Louca Vida”, de Lobão e Bernardo Vilhena).

Em “Ideologia”, notava que o prazer agora era risco de vida.

“Sercan tora goraéu ma coisa tão forte que economizo gestos, fecho mais os olhos para cantar, coisa que o Ney me ensinou. Nesse show, falo em vida umas seis vezes. Hoje tenho enorme respeito pela vida — peço licença”, disse ao Globo.

Cazuza mudou sua perspectiv­a em relação à vida, o que também deu combustíve­l à sua vertente social. É dessa época sua trinca de músicas políticas —“O Tempo Não Para”, “Ideologia” e “Brasil”. “Parei de falar um pouco do meu quintal e passei afalar da minha geração ”, disse em 1989.

No livro “Só as Mães São Felizes”, a mãe do cantor, Lucinha Araújo, diz que Cazuza cantarolav­a aletrade“Ideologia ”— então inédita—em meio a delírios no hospital. Estava “conectado ao mundo pelos tubos de respiração e medicament­os”, e perdendo “a noção do dia e da noite”.

A música, escrita com Frejat, está no álbum de mesmo nome, de 1988. “O tratamento foi tão importante quanto agravação do disco. Este discoé da sobrevivên­cia ”, disse.

Também com Frejat e internado, Cazuza escreveu “Blues da Piedade”, motivado pela maneira como as pessoas passaram a olhar para ele com comiseraçã­o. Nessa época, chegou a dizer que a Aids caiu “como uma luva, modelinho perfeito da direita e da Igreja”, por impulsiona­r o moralismo e a homofobia.

Na época, Cazuza também andava tomando o que chamou de “soro da verdade”. Sua língua afiada rendeu “sincericíd­ios” e confusões, como quando saiu vaiado em Maceió ou quando cuspiu numa bandeira do Brasil no palco.

O despudor da poesia de Cazuzaganh­ava novos contornos, com sua franqueza direcionad­a às questões políticas estruturai­s do país, ao amore ao existencia­lismo. “Preciso Dizer Que Te Amo”, feita com Bebel Gilberto e Dé Palmeira, descartava a ironia numa declaração direta e singela.

“Burguesia”, seu último disco, de 1989, trazia o cantor debilitado, dedicando suas últimas forças às gravações.

Em “Quando Eu Estiver Cantando”, que encerra o disco duplo —e que na segunda parte traz o momento mais melancólic­o de sua obra—, Cazuza busca a redenção pela arte. Diz que o canto o redime de seu lado mau, é “minha salvação”.

“Azul e Amarelo” alude às cores de Logunedé, orixá do artista, que conversa com “senhores deuses”. “Estou pronto para ir ao teu encontro, mas não quero, não vou”, canta. A faixa seguinte, “Cartão Postal” —de Rita Lee e Paulo Coelho—, começa perguntand­o “por que sofrer com despedida”.

Cazuza cantou o fim da vida de uma perspectiv­a rara. Sofria as consequênc­ias de uma doença que, além de fatal, acentuava o preconceit­o de que sempre foi vítima, tanto por sua sexualidad­e quanto pelo estilo de vida hedonista.

Sua faixa mais explícita sobre o drama talvez seja “Cobaias de Deus”. Ele se descreve como “desmilingu­ido”, com “cara de boi lavado”, fala sobre outras encarnaçõe­s, compara o “hospital maquiavéli­co” a uma jaula e se diz solitário —tudo com uma sinceridad­e cortante. “Meu pai e minha mãe, eu estou com medo/ porque eles vão deixar a sorte me levar.”

Lembrado como roqueiro rebelde e poeta inspirador, Cazuza, nas palavras de Gilberto Gil —no livro de sua mãe—, “tinha um modo corriqueir­o de dizer coisas profundas”. “Era um belo observador do ser humano e tinha a ousadia de universali­zar sua individual­idade. Tinha também a dimensão da tragédia muito explícita, muito almejada, desejada e produzida pela dinâmica vital.”

 ?? Masao Goto Filho/Folhapress ?? O cantor e compositor Cazuza, morto há exatos 30 anos durante show realizado no Palace, em São Paulo, em 1988
Masao Goto Filho/Folhapress O cantor e compositor Cazuza, morto há exatos 30 anos durante show realizado no Palace, em São Paulo, em 1988

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