Folha de S.Paulo

Jogador brasileiro relata episódios de racismo na Geórgia

Atacante Felipe Paim, 23, já foi chamado de ‘macaco’ em partida no país

- Alex Sabino Campeonato Inglês,

são paulo Do outro lado da linha, a voz do baiano Filipe Vasconcelo­s Paim, 23, fica embargada ao falar sobre uma experiênci­a que pode parecer banal: fazer compras.

“Você é negro? Se é, vai me entender”, afirma.

O atacante do pequeno Merani Martvili, da 2ªdivisão da Geórgia, está no país do leste europeu desde 2018. Filipe mora em uma casa com dois africanos: um goleiro de Camarões e um atacante de Mali. Eles são os três únicos homens negros de Martvili, cidade com 4.500 habitantes a 280 quilômetro­s da capital, Tbilisi.

O brasileiro esperava sua vez próximo ao caixa de loja local quando uma cliente que estava na sua frente percebeu ter esquecido de pegar um item na prateleira. Quando se virou e viu Filipe, desistiu de permanecer na fila perto dele. Foi embora.

“Sabia que poderia passar por situações assim quando vim para cá. São coisas que infelizmen­te podem acontecer com todo negro. Inclusive no Brasil, que é um dos países mais racistas do mundo. Mas há cenas que vivi aqui que nunca tinha visto ou vivido. Mesmo pensando que algo poderia acontecer, eu sou um ser humano”, completa.

Tudo ficou pior a partir de março, com a pandemia da Covid-19. Filipe diz que, quando ia ao mercado, via no olhar das pessoas o medo. Todas se afastavam. “Se havia uma criança, ela saía correndo. Não é força de expressão. Saía correndo de verdade”, conta.

Um diretor do Merani Martvili pediu que ele ficasse em casa. Se precisasse de qualquer coisa, era só pedir. Mas o brasileiro não aguentava ficar trancado. Os companheir­os de origem africana, quando chegaram, falavam apenas inglês ou francês. Ele não tinha com quem conversar.

Sair para caminhar sozinho, mesmo que por alguns minutos, era uma forma de manter a sanidade mental. Mas ao mercado ele diz que não vai mais. Quando necessita de algo, as mulheres georgianas que fazem a limpeza da casa onde mora se oferecem para ir às compras.

“Toda vez que eu entrava no mercado, dois funcionári­os me seguiam. Todas as vezes. Eu andava de um lado para o outro, ia e voltava para a mesma prateleira. Fazia de propósito, só para sacanear”, relata.

“Um mexicano veio fazer teste no clube. Eu o levei ao mercado e, quando chegamos à porta, fiz uma experiênci­a. Pedi para ele entrar antes. Não aconteceu nada. Quando eu entrei, dois funcionári­os começaram a me seguir.”

Nascido em Feira de Santana (a 120 km de Salvador), Filipe iniciou a carreira no sub-17 do Rio Verde, em Goiás.

Disputou pela equipe o estadual e foi contratado pelo Goiás, clube em que ficou por dois anos. Jogou a Copa São Paulo de 2017 pelo Mogi Mirim antes de voltar para o Fluminense de sua cidade natal.

No fim daquela temporada, passou três meses em teste na Coreia do Sul. Não ficou e retornou para Feira de Santana. Foi quando surgiu a possibilid­ade de ir para a Geórgia no primeiro semestre de 2018. Assinou com o Dila Gori, da 1ª divisão. Depois se transferiu por empréstimo ao Shevardeni, da 2ª. Fez 7 gols na liga.

Voltou ao Dila Gori e em fevereiro deste ano chegou ao Merani Martvili. Aceitou a transferên­cia para ter oportunida­des de jogar. Atuou duas vezes antes da interrupçã­o causada pela pandemia.

“Eu vim porque decidi que era o melhor para a minha carreira. Sei que tenho potencial para me destacar e tenho esperança de que vai aparecer algo melhor”, diz o brasileiro.

Suas experiênci­as com preconceit­o não são apenas dos meses no Merani Martville. Em partida pelo Shevardeni em 2019, ouviu torcedor gritar em inglês, na sua direção: “Volte para o seu país, macaco”.

“No calor do momento e pelo fato de ter sido apenas uma pessoa, eu fiquei na dúvida do que tinha acontecido. Era em inglês e pensei que poderia não ter ouvido direito. Depois perguntei para outro jogador que estava próximo e ele me disse que tinha sido aquilo mesmo.”

Nos treinos, como já aprendeu algumas palavras do georgiano, principalm­ente xingamento­s, o brasileiro sabe se defender. Ele afirma que nunca sofreu ofensas racistas dos companheir­os, mas como sente já ter sido tratado como bode expiatório em situações que outros atletas erraram e colocaram a culpa nele aos berros, passou a devolver da mesma forma.

“Quando comecei aqui, gritavam comigo e me davam broncas. Eu não sabia o que acontecia. Quando respondi e falei mais alto do que eles, a coisa mudou. Hoje isso ocorre com um dos africanos. Já disse a ele que precisa retrucar na mesma moeda.”

A única ofensa racista que recebeu de forma aberta durante jogos foi a do torcedor que o chamou de macaco, mas ele confessa sentir que grande parte do preconceit­o vem de forma velada.

“Os jogadores adversário­s me respeitam dentro de campo, mas... É até complicado explicar. Você percebe no olhar alguma coisa. É o mesmo que sair na rua aqui [em Martvili]. As pessoas param o que estão fazendo e me olham dos pés à cabeça. O tempo todo. É por isso que não vou mais ao mercado. Eu vou acabar me exaltando. Vou xingar, vou gritar e vai ser pior. O que eu posso fazer? Existem seres humanos racistas”, afirma.

Nas conversas com amigos que estão no Brasil, já ouviu várias vezes as perguntas: “por que aguentar isso?”, “por que não largar tudo e ir embora?”.

“Quando começaram a acontecer essas coisas, eu chegava em casa e ligava para o Brasil. Queria desabafar. Minha mãe me dava palavras de conforto. Minha avó me perguntou: ‘jogar futebol não é o seu sonho? Não é isso o que você sempre quis? Então não desista por causa de racistas. Você vai resistir’. É isso o que me dá forças”, resume.

O próprio Filipe reconhece que muita gente pode não compreendê-lo. “Eu sei que pode ser difícil, mas muitos negros sabem e já sentiram na pele o que estou falando.”

O atacante deseja que o campeonato recomece logo. No dia 14, o Merani Martvili enfrentará o Aragvi Dusheti. Filipe terá 5 meses para mostrar seu futebol antes do final do contrato, em 31 de dezembro. Até lá, quer permanecer na Geórgia apesar de tudo.

“Toda vez que eu entrava no mercado, 2 funcionári­os me seguiam. Eu ia e voltava para a mesma prateleira. Fazia de propósito Filipe Paim Atacante brasileiro na Geórgia

 ?? Divulgação/Merani Martvili ?? Filipe Paim em treino do Merani Martvilli antes do retorno do campeonato da 2ª divisão na Geórgia
Divulgação/Merani Martvili Filipe Paim em treino do Merani Martvilli antes do retorno do campeonato da 2ª divisão na Geórgia

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