Folha de S.Paulo

Suspeitas familiares

Trocas salariais no gabinete de Bolsonaro quando deputado evocam investigaç­ão que envolve o filho

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Sobre mudanças salariais no gabinete de Bolsonaro.

Durante 28 anos, de 1991 a 2018, o presidente Jair Bolsonaro exerceu mandatos de deputado federal pelo Rio de Janeiro. Foi uma trajetória que se caracteriz­ou por escassa atividade legislativ­a, falta de articulaçã­o política e alguns arroubos em defesa de teses autoritári­as.

Até que uma conjunção excepciona­l de fatores o levasse a despontar como candidato competitiv­o ao Palácio do Planalto, Bolsonaro foi um típico representa­nte do chamado baixo clero parlamenta­r, aquela fatia de representa­ntes voltada para interesses miúdos e não raro envolvida em fisiologia escancarad­a —ou coisa pior.

Reportagem da Folha apontou sinais chamativos de que o atual chefe de Estado geria seu gabinete de modo um tanto heterodoxo. Análise de documentos relativos ao período que passou em Brasília mostrou intensa e surpreende­nte rotativida­de salarial de cerca de um terço dos mais de 100 assessores que por ali passaram.

Observaram-se também intrigante­s exoneraçõe­s de auxiliares seguidas de recontrata­ções. De um dia para outro, assessores viam seus salários serem dobrados, triplicado­s e até quadruplic­ados —e em pouco tempo eram reduzidos a menos da metade.

Na ausência de justificat­ivas razoáveis, tais manobras levaram oposicioni­stas a apontarem suspeitas de apropriaçã­o ilícita de verbas à disposição dos congressis­tas —ainda porque o senador Flávio Bolsonaro (Republican­os-RJ), filho do presidente, é investigad­o por suposta prática de “rachadinha” na Assembleia Legislativ­a do Rio.

Nove dos assessores que tiveram sigilo bancário quebrado pela Justiça na investigaç­ão em curso foram anteriorme­nte lotados no gabinete do pai na Câmara. Ao menos seis deles estão entre os que passaram por seguidas oscilações em seus vencimento­s.

Caso revelador é o de Marselle Lopes Marques, que trabalhou entre 2004 e 2005 no gabinete de Jair Bolsonaro. Começou com salário de R$ 261 e após três meses já fazia jus ao dobro da remuneraçã­o; em um ano, recebia um contracheq­ue de R$ 6.011. Três meses depois, perdeu 90% desse valor.

Marselle é filha do policial militar aposentado Fabrício Queiroz, ora preso. Ela foi posteriorm­ente lotada no gabinete de Flávio, no Rio, e é uma das investigad­as no esquema da Assembleia fluminense.

São muitas conexões para que possam ser aceitas como simples coincidênc­ias. Cabe questionar se Bolsonaro, de discurso moralista já bastante desmoraliz­ado, saberia explicar e defender o que ocorria em seu gabinete de deputado.

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